Os tempos do direito: ensaio para uma (macro)filosofia da história
Publicado em 05 de julho de 2023.
Lá atrás, quando ainda era possível imaginar uma vida contemplativa,
ao menos para aqueles que eram privilegiados pela posição de cidadãos das
muitas polis construídas no mundo helênico, naquele cenário algo mítico e
algo imerso em brumas do passado, a posteridade insistiu em ver na Guerra
dos Titãs ou na passagem da cosmogonia titânica para a cosmogonia olímpica
um grande sinal da transformação do mundo — e da nossa cultura — de uma
cultura dominada por forças da natureza a uma cultura dominada por forças de
si mesma. Na guerra travada pelos deuses irmãos contra os grandes deuses
da natureza, e vencida pelos deuses olímpicos, que então se estabelecem
como comandantes absolutos do planeta e dos destinos dos homens como dos
tempos, a cosmogonia ou a mitologia, sempre fonte infinita de saber, parece
representar o profundo giro antropológico que constitui a marca fundamental,
senão mesmo a marca de nascença da cultura ocidental: a suprassunção do
mundo natural no mundo cultural.
Naqueles tempos, evidentemente não se tinha ainda claro que o advento
da ofística entre os filósofos era paralelo ao advento dos deuses olímpicos
frente aos deuses titânicos, mas nós hoje podemos, com a devida distância que
permite a visão do Todo, perceber como e quão importante terá sido a derrota
dos deuses que representam ou representavam forças da natureza (os titãs e as
titânides) pelos deuses antropoformicizados olímpicos (deuses tamanhamente
humanos a ponto de terem filhas e filhos semideuses e semideusas gerados em
conjunções carnais com os próprios humanos); ali já se encontrava com clareza
o traço característico que separaria ou atomizaria a cultura e depois a civilização
ocidental frente às demais civilizações que com ela coexistiram na história do
planeta.
Também assim, Deus era natural, na filosofia anterior ao estabelecimento
do giro antropológico operado na passagem dos pré-socráticos aos sofistas, no
qual simplesmente o mundo do nomos, ou o mundo da cultura, ou o mundo do
homem, ou o mundo das regras para a vida humana, que até então, com os présocráticos
como com todas as demais civilizações e culturas que coexistiram e
coexistiriam posteriormente com nossas culturas e civilizações, integravam o
mundo da physis — ou, dito de outra forma, o humano que até então integrava
o natural passou a ser separado do mundo da physis. O grande e profundo
giro antropológico significado pela separação definitiva, ou ao menos substancial,
entre phisys e nomos é mérito inequívoco na Sofística, ainda que a história da
filosofia insista em relegar aos sofistas um papel menor e secundário. Não se
trata de reduzir o mérito dos pré-socráticos para elevar o mérito dos sofistas,
mas de compreender que o papel dos sofistas é, ele sim, o de permitir que a
civilização posteriormente chamada de ocidental tivesse o seu efetivo berço de
origem: não, não seguimos as leis da natureza, seguimos as leis humanas, já
que o homem é a medida de todas as coisas.
Essa ideia subversiva, de que o mundo humano não está integrado
no mundo natural mas dele separado, que com o mito fundante trazido pela
revelação de Moisés indica que o mundo humano deve (ou deveria) comandar
o mundo natural, implicou em uma radical diferença em relação a boa parte
das demais culturas e civilizações que se manifestavam e se manifestam em
nosso planeta. Mas aquela ideia, compreendida na filosofia no plano de sua
simples dialética e do questionamento muitas vezes esvaziado pelos pósteros,
na mitologia encontra e sempre encontrou seu momento de glória na derrota
do tempo pelo homem através da força do deus que representa o comando
antropomórfico do planeta através do Olimpo.
No mito grego, os Titãs, à frente deles Cronos, o deus do tempo,
venerado como Saturno na tradição romana e honrado no 25 de dezembro, data
em que no continente europeu se dá a mais longa de todas as madrugadas
e já não será tão longa a noite, porque a partir da Saturnália os três dias de
queda, de diminuição da luz do sol, de obstacularização da energia planetária
agora deixarão de existir, porque as festas em homenagem ao deus do tempo,
Saturno, propiciarão que, a partir de 25 de dezembro, o menor dia do ano,
todos os demais dias sejam dias mais ensolarados e com mais luz, brilho e
energia. Não por acaso, a sabedoria da Igreja Católica e Apostólica Romana fez
coincidir a data magna da Cristandade — o Natal de nosso Senhor Jesus Cristo
— com a festa da Saturnália, fazendo parecer (apenas para aqueles que não
compreenderam os ajustes promovidos pela Santa Madre Igreja para garantir o
predomínio cultural do catolicismo sobre todas as demais formas religiosas — e
por isso foi necessário absorvê-las no seio do catolicismo —, e ficar a falaciosa
imagem de Jesus como um capricorniano(?!) nascido num 25 de dezembro, algo
que qualquer astrólogo minimamente preparado irá contestar com argumentos
os mais elementares: A personalidade de Cristo jamais seria uma personalidade
capricorniana.
Mas o destronar de Cronos, a derrota de Cronos pelos próprios filhos aos
quais se comprazia em digerir — e o tempo efetivamente devora seus filhos — é
a representação mitológica de que a força natural do tempo não exerce sobre a
força cultural do humano o mesmo impacto que exerce sobre o reino animal, o
reino vegetal e mesmo o reino mineral. Habitantes dos três reinos mencionados
são particularmente castigados pelos turnos e returnos ofertados pelo tempo:
humanos somos capazes de vencer esses castigos, estas dificuldades, estas
diferenças, e acima delas construir nosso próprio mundo humano, um nomos
cultural próprio e resistência combativa uma avassaladora sobre quaisquer
forças naturais que se coloquem em desafio à vontade humana.
Mas, se por um lado o tempo foi derrotado como deus e teve de ceder
espaço ao comando de deuses mais humanizados que naturalizados, no curso
de centenas e milhares de anos, permaneceu um imenso desafio para os
humanos a resposta do real conceito, do efetivo conceito, do tempo. A física
mais avançada e contemporânea, além de já não mais manter-se nos limites da
crença à matéria, também já não cultua o tempo como ainda há poucos séculos
o kantismo o fizera. Para Kant, como sabemos, o tempo é condição de existência
humana e sem ele não existiríamos — tempo e espaço são condições a priori
para o pensamento e a existência humana.
Há no entanto filósofos, talvez desde a sabedoria inequívoca de Jean
Batista Vico, o fervor instigante do Romantismo alemão, ou mesmo o rigor
sistêmico da dialética hegeliana, que colocam o problema do tempo — ou o
recolocam em termos tamanhamente distintos de todos os seus predecessores
— que nos permite ver e pensar não mais no tempo como um dado natural
e existente à parte e apesar da vida humana, mas como uma construção do
imenso conjunto cultural de que se trata a nossa história.
Ao lançar o problema histórico diante do problema cronológico, Vico,
os românticos e Hegel estabelecem um novo patamar de debate, uma vez que
agora não é mais o tempo como uma força natural ou uma condição inevitável,
um deus titânico com força óbvia e incontrolável, quem se coloca diante de
nossas reflexões, mas a história cuja compreensão exige necessariamente
alguns passos ou etapas, ou ainda, para nos mantermos leais ao pensamento
hegeliano, momentos ou movimentos que dirão respeito à compreensão da
história não mais como uma mera ciência do tempo passado, ou ciência de
fatos ocorridos em tempos passados, mas como uma verdadeira filosofia,
complementar ou sinonímica à própria Filosofia, na medida em que, como nos
alerta Hegel em sua Filosofia da História, só é possível construir a Filosofia
mediante sua rememoração histórica e só é possível compreender a História
mediante a percepção de seus pontos mais elevados e portanto nos quais os
valores estiveram no seu apogeu: Hegel completa o trabalho de Vico e dos
românticos estabelecendo tamanha dignidade filosófica à história que a coloca
diante de um novo patamar: não se trata mais de tempo, como tempo passado,
como tempo vivido, nem mesmo como tempo vivente, mas agora de uma
história que se manifesta sempre racionalmente em uma percepção de que não
somente o passado integra e brilha na história como também o futuro dela
faz parte com a mesma dignidade que o fugaz presente, cuja característica
central, aliás, é acabar de ter passado.
Em Hegel, portanto, só é possível pensar a história como um longo
caminho que se enrola sobre si mesmo sempre agregando e incluindo mais e
melhor tudo o que surge no curso da própria história , —de tal forma que a
história, em Hegel, não somente é filosofia, como é filosofia viva, orgânica, capaz
de desenvolver-se (ainda que este verbo não seja o mais apropriado) em direção
ao devir. A linha da história leva do passado mais distante ao futuro ainda mais
distante e todo esse processo — a que podemos chamar de historicidade — é
infinitamente mais complexo do que uma simples cronologia poderia demonstrar.
O homem move-se na história não simplesmente na sua vida mais
simples, mais civil, mais comum, mais vulgar, mas na história tomada como esse
todo, esse fio de ouro que unifica as experiências culturais de um povo, de uma
nação ou de uma civilização.
A consciência da historicidade, portanto, leva os hegelianos a perceberem
que o tempo e seu espírito (o Zeitgeist) estão em Dialética conosco e portanto
são negados, conservados e elevados assim como nós também somos
negados, conservados e elevados pela história que nos desafia e enfrenta
permanentemente. É essa história, vivida na longa duração, de que nos falava
Fernand Braudel, a verdadeira história, uma vez que compreensiva do papel
gigante que a história e a historicidade representam na construção do mundo
humano, a ponto de não sermos mais capazes de pensar em uma razão que não
seja dotada, ela mesma, de historicidade. Até a mais correta, justa, boa, bela das
decisões estará sempre submetida ao tempo, ao seu tempo, à historicidade, que
para Hegel constituía o único tribunal verdadeiro sobre a face da Terra.
Pensar o direito nessa longa duração, nesse processo dialético
tamanhamente complexo, no qual, ao arrepio das bases tradicionais da jurística,
para as quais ou bem o direito é fruto inequívoco da natureza (seja ela mera
natureza, seja ela a vontade de um deus, seja ela estruturada em livros sagrados),
torna-se uma ficção ingênua, quase pueril, na qual aparece vez por outra uma
história do direito mas meramente destinada a elogios ou registros meramente
formais da emergência ou eclosão de certas normas escritas ou formais em
sentido técnico. Não somente os juspositivistas assim se colocam, mas também
os jusnaturalistas, para os quais o direito brota da terra ou cai do céu, ou ainda
é quase um imperativo de restos já ditado pela normas religiosas que a eles
soam superiores às normas jurídicas. O ponto é que esta casuística, ainda
quando supostamente ordenada por uma razão, simplesmente não corresponde
à verdade. Ela busca eliminar do direito uma de suas mais importantes
características: não por acaso, para nosso deleite, a historicidade. Para uns e
para outros, o direito não detém historicidade mas apenas racionalidade. É
por isso que tantas e tantas vezes fica óbvio para os alunos de graduação que
os cursos que lhe são ofertados de história do direito não têm conexão nem bem
com o direito que estudam nas disciplinas ditas dogmáticas, nem muito menos
com o direito que se critica nas aulas zeetéticas das disciplinas jusfilosóficas: a
história do direito segue sendo um terreno onde filósofos do direito não são bemvindos
e onde a filosofia do direito não oferta nenhuma reflexão e nenhum aporte
que seja minimamente aceito pelos colegas historiadores do direito.
Que dizer de uma história do direito alienada de sua própria filosofia do
direito? Que dizer de uma filosofia do direito tamanhamente abstrata a ponto
de não conseguir comunicar-se de modo direto e evidente com a história e os
valores cultuados e debatidos em seu tempo? Que dizer de uma ciência (ou de
um conjunto de ciências, as ciências jurídicas) que tenta fazer-se dogmática,
eterna, imutável, racional, lógica, e finge não possuir sua própria historicidade?
São essas gigantescas lacunas que o pensador José de Magalhães
Campos Ambrósio traz dentro de si e traduz em seu belíssimo texto. Com sólida
formação na Escola Jusfilosófica Mineira, onde foi orientado diretamente tanto
pelo grande Catedrático de Teoria Geral e Filosofia do Direito que nos lidera,
Joaquim Carlos Salgado, como pelo atual ocupante da honrosa função de
Professor Titular em Teoria do Estado na UFMG, que prefacia este livro, além de
vasta experiência internacional que inclui uma longa temporada com um dos mais
importantes filósofos do mundo, Gonçal Mayos, integrante da Escola Filosófica
talvez hoje de maior prestígio em escala global, a Escola de Barcelona. José
de Magalhães lançou-se a um desafio que talvez nenhum de nós, ou nenhum
dos nossos, assumisse com tamanho rigor e denodo: o de buscar ver no maior
altiplano possível — e eis o olhar macrofilosófico de Gonçal Mayos —, a imensa
presença do direito em sua própria história ou, talvez, da história em seu próprio
direito, construindo bases para que possamos pensar não somente o direito
na Filosofia da História, mas uma genuína Filosofia da História do Direito,
que possa nos permitir acesso a uma compreensão teleológica do direito, não
somente a um passado do direito, mas a um devir do direito, a um telos da
juridicidade, a um sentido para a construção e a imaginação das instituições
jurídicas.
Se o Direito possui suas próprias características e instituições pensadas e
produzidas segundo uma historicidade construída e imaginada, travada e obtida
na longa duração e no processo de luta entre distintas concepções do que deva
ser o justo, então também o Direito não possui simplesmente um passado,
mas também um futuro e portanto uma história que atravessa com elementos
teleológicos, com teleologia própria, o longo caminho do passado mais remoto
ao futuro mais distante.
Se assim é, José de Magalhães abre o olhar dos juristas e dos filósofos
do direito para uma realidade até então ignorada: o futuro do Direito, assim
como o futuro do Estado e do Estado de Direito. Essa abertura reflexiva, esse
horizonte de pensamento que decorre do labor filosófico, jusfilosófico, históricofilosófico
de José de Magalhães resulta em um direto combate à sensação de
fracasso institucionalizada e generalizada no início do século XXI, quando a
humanidade parece não mais enxergar seus próprios caminhos como caminhos,
quando a história parece de fato a beirar-se de seu próprio cataclisma, e quando
as utopias perdem o papel reitor que sempre tiveram nos processos políticos,
jurídicos e sociais de todas as culturas. Diante de um planeta que perdeu a
esperança em si mesmo e não mais exerce a criatividade na imaginação
institucional, José de Magalhães nos mostra o quão aberta a história é e em
consequência disto o quão aberto o Direito e o Estado necessariamente são.
Sua obra, que o leitor agora tem em mãos, é no fundo um gesto de imensa
esperança em cada ser humano e no conjunto da humanidade. A obra revela o
direito em sua historicidade e portanto demonstra como as estruturas jurídicas
e o Estado de Direito como um todo estão disponíveis à infinita capacidade
humana de exercer sua liberdade. Não há, nem nunca haverá, fim no sentido
de término da história. Muito menos do Direito, do Estado, da esperança ou da
utopia. Eis um autor e um texto que nos ensinam que os verdadeiros olhos da
alma revelam muito mais do que os artificiosos olhos da mídia buscam tatuar em
nossas retinas. Boníssimo proveito e que grandes ideias surjam a cada leitor a
partir do mergulho nesta obra tão importante e tão significativa na luta contra o
pensamento único e a despolitização total da humanidade.
Belo Horizonte, Primavera de 2023.
Professor José Luiz Borges Horta
Titular de Teoria do Estado na
Universidade Federal de Minas Gerais
Os tempos do direito: ensaio para uma (macro)filosofia da história
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DOI: 10.22533/at.ed.114230407
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ISBN: 978-65-258-1511-4
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Palavras-chave: 1. Direito. I. Ambrósio, José de Magalhães Campos. II. Título.
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Ano: 2023
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Número de páginas: 154