O museu como espaço de interação
Publicado em 23 de agosto de 2022.
Espaços museológicos vem sendo, durante os séculos, palcos de elogios, críticas, mudanças e transformações na sua maneira de se mostrar para a sociedade. No passado, o conceito de museu partia do princípio – utópico, mas ao mesmo tempo potente e estimulante – de disponibilizar a alta cultura para todos, educando e provendo satisfação a seus visitantes. O que antes era dedicado a uma exposição de memórias por meio de coleções materiais, hoje tem se tornado mais abrangente; abrindo-se para definições, também, ligadas a uma valorização da participação ativa dos visitantes. Segundo o arquiteto e historiador Josep Maria Montaner (2003), é possível destacar, no século XX, uma série de experimentações no campo da arquitetura museal, que vem se expressado em diversas tipologias que modificaram o modo com que o espaço projetado direciona nossa relação com as obras de arte e com a mediação de conteúdo. Isso se deu, também, em função das alterações do entendimento que a arquitetura assume nesses ambientes, buscando a ampliação e diversificação dos públicos frequentadores dos museus.
Experimentações espaciais também levaram a novas maneiras de considerar a área direcionada às exposições, as quais se popularizaram como tipologias de “cubo branco”, caracterizando espaços adequados para a valorização da arte moderna e contemporânea por sua pretensa neutralidade. Com a introdução de novas tecnologias aplicadas aos espaços expositivos, inicia-se um processo de transformação, caracterizando o que ficou muitas vezes conhecido como “cubo preto” ou “caixa preta”: espaços escurecidos que permitam a exibição de projeções e luzes característicos das Media Arts – como foram assim denominadas. Com o desenvolvimento das chamadas TIC’s (Tecnologias de Informação e Comunicação), o museu tem a possibilidade de tornar-se mais abrangente, atendendo a camadas sociais que não costumam ter acesso a esse tipo de experiências de educação não-formal e entretenimento.
Exemplos nacionais notáveis, como os trabalhos de Hélio Oiticica e Lygia Clark, se destacam por serem precursores, em escala mundial, da participação e interação ativa – ainda não digital – do visitante em museus. Com essas experiências, eles criaram trabalhos artísticos que instigam a participação criativa, trabalhando o espaço físico e centrando a arte no espectador, e não no objeto em si. Tais pensamentos e influências manifestas por esses artistas anteciparam o que se chamou Movimento Internacional da Nova Museologia, que forçou os museólogos a pensarem em estratégias inovadoras que transcendessem a modalidade tradicional de expor o acervo em museus. Mesmo com essa mudança de postura no que se refere à exibição de obras e ao incentivo a participação e interação; o espaço museológico ainda segue, infelizmente, servindo parcelas reduzidas da sociedade. O historiador e museólogo Ulpiano Bezerra de Meneses (2006) exprime que o museu é uma entidade mutável e reciclável; e que também pode morrer quando não renovado. A ideia de
renovação dos espaços museais, entretanto, traz também alguns desafios para os quais a arquitetura e o design se configuram como agentes essenciais, especialmente no que tange às relações espaciais desenvolvidas com o uso de tecnologias digitais interativas.
As novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) passaram a ser aplicadas em museus, nas últimas décadas, para diversos fins; almejando a reaproximação ao grande público e o desenvolvimento de maneiras inovadoras de interação com o conteúdo. Por outro lado, a aplicação leviana do digital leva prontamente a uma interpretação generalista e comum nos meios acadêmicos de considerar seu uso como algo que contribui no processo de espetacularização da cultura, da arte e do museu em si. Tais interpretações se mostram incapazes de “separar o joio do trigo” e fazem parecer que as tecnologias da comunicação assumam o papel de “vilãs” na conformação do espaço museográfico. Na verdade, porém, os principais erros cometidos na concepção de dispositivos expográficos tecnológicos residem na desassociação dos novos meios em relação aos conceitos iniciais propostos dentro dos processos de concepção e projeto das experiências museológicas, que assumem caráter essencialmente multidisciplinar. Na presente obra, Bianca Lupo aprofunda a compreensão dessas questões, visando entender sistematicamente como diversas frentes de projeto podem caminhar juntas, contribuindo para o desenvolvimento de processos que almejam garantir a integração entre os campos da arquitetura, museografia e museologia.
As questões tratadas neste prefácio buscam pincelar alguns temas de investigação esquadrinhados por Bianca Lupo na presente obra; tarefa que ela realiza com maestria ao buscar entender como o diálogo entre as interações com dispositivos se dá na relação com o espaço museal. Essa questão tangencia pontos essenciais para o planejamento de novas instituições museais na contemporaneidade; afinal, a digitalização das mídias e dos artefatos é uma questão definidora do nosso tempo, e que aponta para potenciais promissores dentro da discussão sobre a musealização do patrimônio imaterial na atualidade. A autora realiza uma extensa investigação de exemplos de interações museológicas, examinando profundamente o que ela chama de “espaço interativo”. Tal relação com o espaço projetado direciona o pensamento dos campos da arquitetura e design para uma expansão da noção de interação, antes limitada apenas ao momento em que o sujeito interage efetivamente com o artefato no museu. Deste modo, Bianca efetiva uma densa reflexão a respeito da integração entre as diversas frentes e entidades que compõem a experiência museológica interativa digital.
É importante frisar que um dos desafios contemporâneos presentes no uso de tecnologias digitais em museus é responder a uma disseminada visão fetichizada do tema, que tem levado curadores a expositores a serem praticamente “obrigados” a dispor de tecnologia para que seus espaços sejam considerados atualizados e devidamente inseridos no âmbito museológico do século XXI. Ao abordar o tema da fetichização nos espaços museais, o professor Ulpiano Meneses aponta que a fetichização “[...] desloca os
significados das coisas de sua produção para as coisas (elas próprias), como se fossem atributos imanentes” (MENESES, 2006, p. 6). Ocorre, portanto, uma hiper valorização da interatividade mediada por novas tecnologias em museus; muitas vezes de modo acrítico e dissociado do usuário e do contexto no qual está inserida. Essas disjunções podem ser verificadas tanto do ponto de vista arquitetônico, como no sentido conceitual; ao tratar do próprio plano museológico e pedagógico da instituição. Como pontuam Dubberly et. al. (2009), a fetichização do espaço museal pode levar a soluções fáceis e rasas, resumidas a um simples apertar de botões – e que são frequentemente denominadas “interativas”, mas sem se usar desse atributo para fomentar gastos cognitivos enriquecedores para os visitantes.
Embora haja alguns bons exemplos e diversas possibilidades de aplicação de ferramentas digitais interativas no espaço museal, o que se vê reproduzida em larga escala é uma grande quantidade de usos banais e descontextualizados de dispositivos expográficos tecnológicos, os quais não buscam provocar estímulos mais significativos nos visitantes, concentrando-se em aspectos superficiais da transmissão de informação. Devido ao uso acrítico e raso das tecnologias da comunicação em museus, faz-se necessário refletir criticamente sobre a distinção entre o que é mero entretenimento informativo, e o que é de fato conhecimento proporcionado pela experiência. A mediação de conteúdo pelas tecnologias da comunicação pode ser confundida com o objetivo em si; quando, na verdade, trata-se de um meio ou ferramenta usada para que o usuário possa realizar sua interação com o ambiente, com os seus pares e consigo mesmo. Tornar o museu mais atraente, atualizado com as novas tecnologias não pode, portanto, ser um objetivo em si; mas um recurso para melhor atingir os objetivos a que a instituição se propõe. Arquitetos, designers, curadores, projetistas, historiadores, museólogos e demais profissionais envolvidos no desenvolvimento de experiências museológicas não podem perder tais questões de vista, assim como defendido diversas vezes, neste livro, por Bianca Lupo.
O pensamento do físico espanhol Jorge Wagensberg, abordado em alguns momentos pela autora neste livro, tornou-se conhecido por suas importantes reflexões no campo da museologia da ciência, sobre o uso da interatividade aplicado ao espaço expositivo e, inclusive, sobre a necessidade de desenvolver processos multidisciplinares para a concepção de instituições museológicas. A atuação multidisciplinar de Wagensberg contribuiu para que o pesquisador exercesse um papel fundamental para a divulgação de temas científicos ao grande público, integrando áreas do conhecimento como filosofia, meio ambiente, museologia e história da ciência. Tomado como uma das principais referências sobre a estruturação de museus na contemporaneidade, é interessante destacar sua seguinte colocação:
A tecnologia caduca sempre muito rapidamente. As boas ideias, por outro lado, não caducam jamais. É nisso que os museólogos nunca devem
econo¬mizar: as boas ideias para explicar boas histórias com inteligência e beleza! Um bom museu não se constrói como se faria um livro ou um filme, quer dizer, começando pelo índice. Um bom museu, insisto, se constrói sobre um punhado de ideias brilhantes (WAGENSBERG, cf. FURLANETTO, 2013).
Imaginar a paradoxal compreensão de que o uso da tecnologia pode ter influências positivas ou negativas em uma experiência de visitação abre espaço para pesquisas como esta apresentada neste livro. Sob esse aspecto, é possível entender que o problema não é o uso da tecnologia em si, mas a sua reprodução acrítica e descontextualizada, mais centrada na transmissão de informação do que na mediação do conhecimento. Além das questões previamente pontuadas, Bianca realiza um passeio teórico-reflexivo sobre a existência dos “museus sem acervo”; assunto este que enseja indagações a respeito da necessidade, ou não, de uma fisicalidade material do objeto museal. Entendendo que as interações com as novas TICs possibilitam abordar aspectos imateriais de artefatos e das informações a ele associadas; abre-se espaço para a integração direta com memórias pessoais e subjetividades do usuário, as quais não são necessariamente atreladas a um objeto físico, de caráter histórico ou artístico. Tal aprofundamento se fundamenta neste livro por meio de um mergulho em dois dos variados exemplos de museus interativos que a autora aborda: o Museu do Futebol, em São Paulo, e o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro.
Ao tratar destes dois casos, Bianca Lupo investiga o processo de projeto destes notórios exemplos, motivo pelo qual ela entrevista uma série de figuras-chave que participaram das concepções iniciais referentes ao conceito dos museus estudados, até entidades que estavam mais a frente nos períodos executivos do espaço arquitetônico. A aproximação destes dois momentos distintos do processo de projeto – conceito e execução – provocou alguns importantes resultados que fazem com que este livro apresente o potencial de inspirar implementações futuras de museus interativos que possam vir a ocorrer em nosso país. A autora, além de levantar essas questões, também aborda caminhos de resposta; propondo que a tecnologia em museus seja pensada de modo criterioso, não apenas como massa de manobra para estratégias mercadológicas; mas sim trazendo elementos que possam causar, de fato, resultados positivos e construtivos na visitação, ensejando mais pontos de interrogação que exclamações junto à experiência em museus.
Por fim, desejo que o processo de leitura do livro “O museu como espaço de interação” também provoque muito mais interrogações do que exclamações, pois assim ocorreu comigo. Boa leitura!
Diego Enéas Peres Ricca
REFERÊNCIAS
DUBBERLY, Hugh; HAQUE, Usman & PANGARO, Paul. What is interaction? Are there different types? Interactions, 16(1), 2009, pp. 69-75.
FURLANETO, Audrey. Futuro dos museus está na criatividade e não na tecnologia, dizem especialistas reunidos no Rio. O Globo. Rio de Janeiro: 10 ago. 2013. Disponível em: <shorturl.at/fpPZ3>. Acesso em: 27 abr. 2022.
MENESES, Ulpiano Bezerra de. Museu virtual é o museu do futuro? Revista Musas. São Paulo: 2009, pp. 56-59.
MONTANER, Josep Maria. Museus para o século XXI. Barcelona: Gustavo Gili, 2003.
O museu como espaço de interação
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DOI: 10.22533/at.ed.019222308
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ISBN: 978-65-258-0401-9
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Palavras-chave: 1. Museus. I. Lupo, Bianca Manzon. II. Título.
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Ano: 2022