O Caminhar na Educação: Narrativas de Aprendizagens, Pesquisa e Formação
Caminhos híbridos, ubíquos e líquidos de vivência e aprendizagem
De pronto, a leitura deste livro desperta, entre outros, o sentimento sereno e feliz do nomadismo. Viajar é preciso. Quais viagens e por quais caminhos? As respostas também vêm de pronto. Os espaços são múltiplos e se multiplicam porque hoje as viagens não se realizam apenas nos deslocamentos geográficos, em visitações de paisagens físicas e humanas. Fazem-se também no contraponto contínuo dos deslizamentos propiciados pela arte dos cliques nos espaços informacionais em que o existir se torna líquido.
O que é viver, ensinar, pesquisar, formar e entregar-se à aprendizagem contínua, incessante, desbravadora e corajosa que tira proveito da cibercultura, essa cultura híbrida em que o físico e o digital se cruzam, se interpenetram e nos transformam em seres híbridos e ubíquos. Eis o que este livro-jornada nos apresenta. Comecemos pela viagem.
Emprestei a exortação “viajar é preciso” de um texto guardado na memória, inesquecivelmente lindo, assinado por Sergio Paulo Rouanet, texto que introduz a viagem do autor pelos escritos de Walter Benjamin. Viajar é preciso porque a razão viva, metabólica, que não se entrega aos hábitos entorpecidos, é razão nômade, aquela que também aprende nos deslocamentos geográficos que explora. Só humanos viajam. Animais não viajam, migram para fugir aos rigores do inverno. Mesmo os humanos que ficam, não viajam, são diferentes das plantas que têm raízes e dos bichos que não podem sobreviver fora de seu ecossistema. Por isso, viajar é um ato de liberdade. Precisamos, sim, partir para os prazeres do trânsito, das descobertas e do retorno. Viajar, de fato, é retornar transformado.
Existe, entretanto, um outro tipo de viagem, aquele que fazemos sem sair do lugar, ou seja, nossas viagens pelas circunvoluções do pensamento. Pensar é preciso. C. S. Peirce dava a isso o nome de musement cuja tradução em português é a palavra, pouquíssimo usada, uberdade para significar fertilidade, valor em produtividade do pensamento. É uma certa ocupação agradável e refrescante da mente, uma espécie de devaneio, contanto que retiremos desse termo a ideia de fantasia e de sonhar acordado, um devaneio, portanto, que não é movido pela imaginação pura e simples, mas pelo desprendimento, pela entrega ao puro jogo do pensamento.
Trata-se de um jogo sem regras, a não ser a verdadeira lei da liberdade que pode tomar a forma da contemplação estética ou da construção de um castelo puramente mental.
Se você se entregar a esse tipo de puro jogo meditativo, com a candura que lhe é própria, chegará a um ponto em que atento ao que está em torno e dentro de você, iniciará um diálogo consigo mesmo. Isso é o que constitui a meditação.
Entretanto, além da meditação, existe um outro tipo de trilha para essa modalidade de pensamento, quando se trata do engendramento das ideias. É o pensamento que brinca, que joga consigo mesmo, que viaja meio ao léu sob os comandos dos demônios indomesticáveis das associações de ideias até encontrar uma paragem de visitação em uma ideia que brilha como um achado. Algo próximo daquilo que Walter Benjamin chama de “iluminação profana”. Nascem assim nossas boas ideias, ou pelo menos aquelas que são nossas e que estão nos germens de nossos escritos.
Escrever, contudo, é uma outra viagem. Escrever é preciso. Quando nos deslocamos do solo pátrio e da língua pátria, nossa língua mãe, para outras paragens nas geografias do mundo, tornamo-nos tradutores da língua e da cultura do outro em miragens de cultura própria. Assemelhamo-nos, assim, a forasteiros que lutam para se sentir em casa, pisando um chão que não lhes pertence. Ainda dormimos debaixo de estrelas, mas elas não são as nossas.
Escrever também é uma espécie de tradução. Traduzir pensamentos vagos e ainda incertos em pensamentos articulados, traduzir a fala alheia admirada em fala própria, traduzir a utopia do querer dizer em algo que se diz inelutavelmente incompleto. Em suma, escrever é sempre um ato de coragem. Enfrentar o papel ou a tela branca é como enfrentar um touro à unha, como já dizia Décio Pignatari.
São três os tipos de viagem e de caminhos acima esboçados, caminhos em que cidadãos que somos da cibercultura, nossa vivência é ubíqua pela habitação entrecruzada e híbrida de dois espaços simultâneos: o físico e o ciber. Em primeiro lugar, a viagem pelos espaços e caminhos geográficos nas visitações de paisagens humanas nas quais buscamos nos integrar. Em segundo lugar, as viagens pelas arquiteturas líquidas e moventes do pensamento em busca de sua autotransformação. Em terceiro lugar, a viagem da escritura, entre tensa e prazerosa, atividade em que viver e escrever tornam-se irmãs siamesas, o que nos faz lembrar Sherazade, aquela que conta histórias para sobreviver.
No nosso caso, a sobrevivência é, sobretudo, da memória, pois viagens físicas ou mentais não escritas dissipam-se nas neblinas do esquecimento.
Por essas e outras razões, as quais cada um tem a liberdade de encontrar por si mesmo, convido-lhe, meu caro leitor, meu semelhante, a aventurar-se pelas páginas deste livro onde encontrará viagens e trilhas multirreferenciais, entre cidades e livros, lugares e palavras, roteiros e descobertas, diários e leituras, enfim, interstícios de saber e de sentir, em experiências compartilhadas de aprendizagem híbrida e ubíqua. Com atenção, todavia, para o fato de que tudo aqui deverá soar como uma advertência. Entre as lições tristemente sombrias que está nos dando, o Coronavírus veio também para revelar que o ensinoaprendizagem não poderá mais se dar exclusivamente nos limites de salas quadradas nas quais só se pode aprender quadrado, pensar quadrado e sentir quadrado. Vamos abrir nossos espaços por caminhos múltiplos, híbridos, ubíquos e líquidos. Esse é o convite que este livro nos faz.
Lucia Santaella, 11-05-2020
Em um tempo que está marcando nossa alma com a insígnia do Covid-19.
O Caminhar na Educação: Narrativas de Aprendizagens, Pesquisa e Formação
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DOI: 10.22533/at.ed.418202907
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ISBN: 978-65-5706-241-8
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Palavras-chave: 1. Aprendizagem. 2. Educação – Pesquisa – Brasil. 3.Professores – Formação. I. Rangel, Leonardo.
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Ano: 2020