Ebook - Artistas enfim: A banda da Força Pública de São Paulo nos tempos da Primeira RepúblicaAtena Editora

E-book

1. História da música e de pessoas. I. Santos, José Roberto dos. II. Título.

Livros
capa do ebook Artistas enfim: A banda da Força Pública de São Paulo nos tempos da Primeira República

Artistas enfim: A banda da Força Pública de São Paulo nos tempos da Primeira República

Publicado em 15 de agosto de 2022.

Sempre muito atento à “boca de mil dentes” que formava a cultura sonora da “Paulicea” em 1922, Mário de Andrade identificou que nela tocava “a banda do Fieramosca: Pa, pa, pa, pum!”, como também “a banda da polícia: Ta, ra, ta, tchim”.  Não era sem razão as referências a esses dois grupos musicais. Eles eram bem conhecidos à época, em um panorama bastante concorrido e diversificado de bandas que circulavam pela cidade. Na verdade, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX as bandas de música ocupavam de maneira muito atuante os espaços públicos dos centros urbanos e em São Paulo a situação não era diferente, como indica o modernista. Embora as bandas tenham uma história variada e antiga, fundadas nas práticas comunitárias, civis e militares, elas começaram a se multiplicar na sua forma mais moderna nesse período. Por isso logo no começo do século XX já existiam dezenas e dezenas delas espalhadas pelos bairros de São Paulo. 

É curioso observar como as onomatopeias utilizadas pelo poeta tem aquele traço evidentemente modernista e servem para conectar o leitor aos sons das bandas sustentados pela percussão e os sopros, sobretudo os de metal. Curiosamente na mesma época Monteiro Lobato também utilizou o recurso para identificar os “tá-rá-tá-tás nhambiquaríssimos” das bandas que se “postam na rua estrugindo” seus sons.  Ao contrário de Mário, o tom de Lobato é de reclamação, mas a queixa deixa evidente mais uma vez a presença das bandas circulando estrepitosamente pelas ruas da cidade. Embora tivessem formação instrumental variada, sopros e ritmo eram sempre a base central. Essa matriz conferia aos conjuntos uma potência sonora invejável em uma época que inexistiam os processos de amplificação eletrônica dos sons. Tal condição associada à quantidade geralmente numerosa dos instrumentistas, a variedade do repertório e a mobilidade de suas apresentações, faziam das bandas presenças vivas e marcantes na cidade. Assim, elas participavam ativamente das festas e comemorações cívicas, religiosas e populares. Estavam presentes nos espetáculos teatrais, salas musicais, salões de bailes, coretos, inaugurações e outros tantos locais onde a música era importante de algum modo. Centenas de grupos com essas características circularam pela cidade no começo do século XX. Agrupamentos militares, cooperativas e sociedades de imigrantes, sindicatos e associação de trabalhadores, organizações religiosas, escolas, teatros e comunidades de bairro formaram em algum momento uma banda. Boa parte teve vida transitória, desaparecendo por vários motivos. Dezenas existiram apenas circunstancialmente, vinculadas a determinados acontecimentos particulares. Apenas alguns poucos conjuntos sobreviveram ao tempo, como as bandas Lira da Lapa e a da Força Policial, que existem até hoje. 

Apesar de todo esse dinamismo evidente, a memória e a historiografia, especialmente a da música, negligenciaram o tema, lançando certo silencio sobre ele. A crítica não é nova: José Ramos Tinhorão já reclamava nos anos 1970 que as bandas eram as instituições musicais ‘‘menos estudadas’’ pelos especialistas da música popular.  Os motivos que podem explicar esse desinteresse generalizado são inúmeros. Certamente as definições teóricas categóricas, as inclinações historiográficas irrefutáveis, os estereótipos enraizados e o desprezo intelectual colaboraram de diversos modos. Porém, talvez baste historicizar com mais atenção e cuidado as circunstâncias culturais da época para entender o papel desimportante e secundário que afetaram esses conjuntos logo nas décadas de 1930 e 1940. O desenvolvimento dos meios de comunicação eletrônicos, a variedade e a riqueza das novas práticas musicais e sonoras que apareceram neste período, rapidamente ocuparam os espaços da cultura musical, colocando à margem ou no passado várias experiências sonoras. Algumas delas ficaram restritas a certos ambientes específicos (como o das festas populares), outras assumiram uma certa inatualidade (como as serestas) e muitas ainda tenderam ao esquecimento (como os pregões de rua). Tudo indica que os destinos das bandas reuniram todos esses elementos. Limitadas a espaços circunscritos (o do coreto, o da escola ou o militar), restou-lhes aquele traço arcaico passadista, enraizado num tempo pretérito indefinível que muitas vezes tende, no passo seguinte, ao esquecimento. Bem provavelmente a historiografia projetou de maneira desfigurada essas condições que aparecem a partir das décadas de 1930/40 para o passado do início daquele século, operando desavisadamente com o pecado do anacronismo.  Porém, ao contrário desse suposto silencio, durante os primeiros anos do século XX esses conjuntos tiveram papel cultural importante e muito ativo. Antes da disseminação dos meios mecânicos e depois eletrônicos de difusão, eles formavam um circuito importante de divulgação e mediação pública da música, tanto a de concerto como as populares. Eles funcionavam como autênticos mediadores musicais, já que nos repertórios apresentavam trechos conhecidos de óperas, excertos de música de concerto, valsas, marchas, dobrados, polcas e maxixes. Além disso, muitos deles funcionavam como escolas informais de música ou como uma possibilidade palpável de vida artística profissional permanente, numa época em que essa situação era praticamente inexistente. 

Todo esse passado silenciado precisava ser redescoberto e ouvido para além das certezas estabelecidas e dos preconceitos usuais. Pois bem, esse livro do José Roberto dos Santos procura exatamente superar esses obstáculos e penetra profunda e sonoramente no universo cultural daquela época. Originalmente uma dissertação de mestrado defendida no Departamento de História da FFLCH da USP, esse livro conta a história de uma das bandas mais conhecidas no período, a da Força Policial de São Paulo. Esse grupo musical foi pioneiro na cidade de São Paulo. Sua história está vinculada às instituições policiais e existe até hoje como Corpo Musical PMESP. Sua trajetória teve início em 1843, quando a polícia ainda era conhecida como a Guarda Municipal Permanente e por essa razão o grupo ficou apelidado inicialmente como a Banda dos Permanentes. Na sua trajetória secular ela assumiu diversas denominações, acompanhando as mudanças na instituição policial: Banda dos Permanentes, da Força Pública, da Força Militar de Polícia e da Força Policial. Apesar das várias pressões e limitações que enfrentou internamente nas estruturas militares, como se verá neste livro, certamente a longevidade do conjunto musical está vinculada a estabilidade dessa instituição de estado. Esta não era, contudo, uma trajetória exclusiva do grupo paulistano. Na capital do país, que concentrava grande número de corporações militares, surgiram vários conjuntos deste tipo, como por exemplo, a Banda do Corpo de Bombeiros, regida por Anacleto de Medeiros, muito popular à época e consagrada pela historiografia da música popular.

No início do século XX a banda militar paulistana teve grande presença nas atividades musicais públicas e privadas, apresentando repertório variado e rico. Rapidamente ela se tornou uma referência para os outros grupos existentes na cidade. Nesta época o maestro Joaquim Antão Fernandes foi o regente que mais tempo permaneceu dirigindo a banda e alcançou prestígio artístico na cidade. A prática geralmente dominadora dos regentes associada à forte hierarquia militar da instituição, permitiu-lhe um controle onipotente e severo do conjunto, estabelecendo até mesmo sua identificação personalizada com o maestro. A tal ponto que a imprensa tratava comumente o conjunto como a “banda do Tenente Antão”.  O conjunto participou também de maneira precursora dos primórdios da indústria fonográfica, principalmente na sua fase mecânica, como era comum à época.  Havia uma questão técnica importante que encorajava a aproximação e o interesse das gravadoras pelas bandas. Na fase mecânica, a potência sonora dos conjuntos era muito conveniente para uma melhor captação pelas cornetas de recepção e em seguida fazer vibrar a agulha de registro nos sulcos das matrizes. Por essa razão esses grupos frequentavam com bastante regularidade, em todo o mundo, as salas de gravação, tanto é que a quantidade de fonogramas com registros de bandas na fase inicial da fonografia e bem significativo. Além do peso e importância no processo de captação, no passo seguinte da escuta, as bandas também tinham certo impacto sonoro que valorizava a potência dos aparelhos. Finalmente, o pulsar de seus sons seguidamente nas cornetas dos fonógrafos e gramofones de residências, salões ou nas ruas, ampliava a possibilidade de audiência crescente. Mas, antes dessas questões técnicas, esses conjuntos entraram nos estúdios porque tinham apelo e gosto popular, interessando a incipiente indústria gravá-los. Em São Paulo, diversas bandas entraram em estúdio como Ettore Fieramosca, Giuseppi Verdi, Verissimo da Glória e, claro, a banda da Força Policial. O grupo militar gravou dezenas de fonogramas que José Roberto identificou, organizou e alguns deles poderão ser escutados pelo leitor.  Seguindo a dinâmica cultural destacada logo anteriormente, até pelo menos meados da década de 1930 a banda da Força Policial foi muito atuante, mas foi perdendo sua representatividade musical a partir do novo panorama que se impôs.

José Roberto apresenta um trabalho original e inovador, ancorado em vasta pesquisa documental em torno do cenário musical do período e, especificamente, da Banda da Força Policial. Todo esse trabalho está enraizado no panorama cultural e social paulistano do período, tornando o livro também uma importante referência para a história cultural da cidade. Por fim, mas não por último, pois certamente este foi o impulso inicial da investigação, o pesquisador emprega sua vasta experiência como instrumentista de bandas, para aprofundar suas análises e compreensão do conjunto. Resta então ao leitor seguir o vaticínio de Mário de Andrade e a leitura do livro do José Roberto para conhecer aspectos da história dessa banda em um período determinado e, sobretudo, escutarmos um pouco daquele passado.

José Geraldo Vinci de Moraes

Professor Associado do Departamento 

de História da FFLCH-USP

Ler mais

Artistas enfim: A banda da Força Pública de São Paulo nos tempos da Primeira República

  • DOI: 10.22533/at.ed.484221208

  • ISBN: 10.22533/at.ed.484221208

  • Palavras-chave: 1. História da música e de pessoas. I. Santos, José Roberto dos. II. Título.

  • Ano: 2022

Fale conosco Whatsapp