A educação das pessoas privadas de liberdade, via disciplina prisional
Publicado em 06 de julho de 2023.
O livro que você, leitor, tem em mãos é fruto de dissertação de mestrado
defendida na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Campus
de Francisco Beltrão –, no Programa de Pós-graduação em Educação, no ano de
2021. Por meio do estudo realizado, buscamos analisar o sistema penitenciário
paranaense (1) diante do tema da disciplina imposta aos apenados, por meio do
Conselho Disciplinar. Mas por que escolhemos o tema do Conselho Disciplinar? O
tema da disciplina? Bem, segundo o relatório (2) efetivado pelo Conselho Nacional
do Ministério Público brasileiro, acerca do sistema prisional, no ano de 2019
ocorreram 40.579 faltas disciplinares nas penitenciárias brasileiras. Números
que mostram o fato de que a questão da chamada transgressão da disciplina é
um problema nevrálgico, existente nas instituições prisionais.
Ao analisarmos uma forma específica de ação institucional, prisional,
disposta a partir do Conselho Disciplinar - existente em prisões como a
localizada na cidade de Francisco Beltrão/Paraná –, buscamos discutir aspectos
relacionados às dinâmicas educativo/comportamentais direcionadas aos
apenados, que perpassam o fenômeno do encarceramento. Questão singular,
que nos remete à existência de uma complexa teia de relações desencadeadas
no cotidiano prisional, que delineiam proposições institucionais (o instituído), e
resistências atitudinais (o instituinte). Conformando uma situação tensa, que
percorre o cotidiano de uma das instituições modernas – a prisão –, que mais tem
recebido público no contemporâneo. A título de exemplo, e segundo os dados
coletados pelo Conselho Nacional do Ministério Público, em 2017 a população
prisional brasileira era de 714.810 presos. Já em 2019 passou a ser de 773.151
presos. Um aumento de 58.341 pessoas presas, em dois anos.
Tal fenômeno normalmente vem acompanhado de discursos e, por vezes,
de políticas públicas que se voltam a essa problemática social; bem como, por
análises que crescem e que delineiam apontamentos voltados a elucidar as
questões que constantemente surgem, a partir desse fato social – a prisão –,
envolto pela dinâmica do vigiar e punir (imposição de disciplina e da pretensa
adoção de certos tipos de comportamento), por meio da execução da pena e do
dispêndio de tempo de vida, por parte dos apenados e dos policiais penais, no
interior das prisões.
Com base no aporte teórico advindo de autores como o filósofo Michel
Foucault (3) buscamos compreender a conformação do dispositivo (4) “Conselho
Disciplinar” existente na Penitenciária Estadual de Francisco Beltrão, enquanto
aparato voltado a educar (disciplinar) o comportamento dos apenados que
cumpriam pena nesta instituição. Os dados coletados para a análise se referem
ao ano de 2019. Ano tomado como base para a efetivação da pesquisa.
Cabe salientar, por primeiro, que o sistema carcerário paranaense tem
constituído uma trajetória de atuação respaldada na Lei de Execução Penal
- Lei nº 7210/84 - e pelo Estatuto Penitenciário do Paraná - Lei nº 1276/95.
Documentos que regem a execução da pena e organizam o sistema penitenciário,
nacional e regional, oferecendo dispositivos de controle e atuação, por parte
dos especialistas, que trabalham nesta instituição; bem como, por parte dos
apenados. Dentre estes dispositivos temos o Conselho Disciplinar, que atua
de modo a classificar os modos de conduta e as faltas disciplinares praticadas
pelos apenados. Por meio deste Conselho, ainda, a instituição prisão pune as
transgressões ou desvios de conduta cometidos no interior da prisão, ainda por
parte dos apenados, a partir da instauração de sansão correspondente, em um
primeiro momento, às normas dispostas pelos documentos citados; e, em um
segundo momento, a partir das práticas institucionais efetivadas no cotidiano
prisional.
Outrossim, chamamos a atenção para o fato de que o tema da prisão
pode ser analisado por meio de leituras como as desenvolvidas por autores
como Michel Foucault (2004), que apontaram, do ponto de vista histórico, para
o fato de que esta instituição, no ocidente, se instituiu de modo muito peculiar,
ou seja, “a forma-prisão preexiste à sua utilização, por meio das leis penais”
(FOUCAULT, 2014, p. 223), estando mais voltada a pontos como os relacionados
à conduta dos apenados e à questão da ressocialização, da reeducação destes.
Adotando, por isso, regimes disciplinares atrelados à norma, ou seja, voltados
a instituir procedimentos, diante da conduta dos apenados, voltados a conduzir
suas ações em determinada direção esperada.
De todo modo, a instituição prisão se institui no início do século XIX
quase que de forma unânime nos países do ocidente; justamente por conta de
uma mudança adotada, do ponto de vista da punição, direcionada à população
transgressora da ordem social. Nesta direção, como assinalou Foucault (2014),
“uma nova legislação passa a definir o poder de punir como uma função geral
da sociedade, função que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus
membros” (2014, p.223), por meio dos regimes disciplinares. A questão da
disciplina, portanto – do controle dos comportamentos, feita não mais por meio
da violência, mas amparada em outras formas de ação institucional - se faz
presente na trajetória das prisões, a partir de então. Atualmente, no que diz
respeito as prisões, a questão da disciplina se constitui como marco definidor
de estratégias institucionais – como as alocadas no Conselho Disciplinar – que
organizam a instituição prisão, por excelência.
Observa-se, neste sentido, que a transgressão da disciplina é um dos
principais problemas enfrentados, hoje, por parte das instituições prisionais,
tais como a encontrada na cidade de Francisco Beltrão. Diante deste fato,
questionamos: Quais formas de transgressão existem no ambiente prisional,
localizado na cidade de Francisco Beltrão? As faltas disciplinares, aplicadas,
interferem na execução da pena? Interferem no trabalho dos agentes públicos?
Interferem nas relações interpessoais entre os presos (5)? Conformam formas
específicas de ação, por parte dos apenados, nas prisões? Quais são as regras
de comportamento elaboradas pela instituição? De que modo estas regras são
levadas aos apenados? Como os agentes que atuam na instituição prisional
elaboram suas práticas, diante destas regras? De que modo aplicam aos
apenados o controle advindo destas regras? Estas questões perpassam, de
forma micropolítica, os diversos aspectos da produção subjetiva, ou seja, das
relações de poder e saber que se configuram da PEFB, e provavelmente nas
demais prisões.
Ressalta-se que a Lei de Execução Penal (LEP), Lei nº 7210/84 (6) se
constituiu como importante dispositivo de orientação da conduta dos apenados,
no que diz respeito ao período em que estes se encontram apartados da
sociedade. Na seção III, que trata da disciplina, e em seu artigo 49 (7), a LEP (8)
basicamente classifica as faltas disciplinares em três tipos: faltas leves, faltas
médias e faltas graves (9). Cabe ressaltar que a legislação local é que especifica
as faltas leves e médias, bem como as respectivas sanções a serem utilizadas
diante da ocorrência destas. Cabe, da mesma forma, ao Conselho Disciplinar (10)
prisional atuar como ferramenta administrativa, em consonância com a justiça
penal, mediando este fenômeno – disciplinar/comportamental -, e educativo,
na prisão. Daí, para nós, a importância desta instância institucional, quando
relacionada ao processo formativo/comportamental dos presos.
De todo modo, cabe ressaltar que nossa experiência profissional, calcada
no trabalho enquanto agente penitenciário, que completou 12 anos de 2020, nos
trouxe, por um lado, o interesse pelo tema do Conselho Disciplinar prisional;
e, por outro lado, nos trouxe desafios, no sentido de nos colocarmos como
pesquisadores, e não como profissionais que atuavam/atuam na instituição.
Diante disso, buscamos consolidar um distanciamento mínimo, necessário
ao desenvolvimento de um olhar enquanto pesquisador da questão prisional.
Agindo, inclusive, enquanto um intelectual específico, tal como apresentado por
Foucault (2018):
Parece−me que o que se deve levar em consideração no
intelectual não é, portanto, ser este “o portador de valores
universais”; ele é alguém que ocupa uma posição específica, mas
cuja especificidade está ligada às funções gerais do dispositivo de
verdade em nossas sociedades. Em outras palavras, o intelectual
tem uma tripla especificidade: a especificidade de sua posição
de classe (pequeno burguês a serviço do capitalismo, intelectual
“orgânico” do proletariado); a especificidade de suas condições
de vida e de trabalho, ligadas à sua condição de intelectual (seu
domínio de pesquisa, seu lugar no laboratório, as exigências
políticas a que se submete, ou contra as quais se revolta, na
universidade, no hospital, etc.); finalmente, a especificidade da
política de verdade nas sociedades contemporâneas. É então
que sua posição pode adquirir uma significação geral, que seu
combate local ou específico acarreta efeitos, tem implicações que
não são somente profissionais ou setoriais. (FOUCAULT, 2018.p.
53)
Agindo, portanto, como alguém que mergulha em certas questões e, ao
conhecê-las, pode atuar de modo a contribuir com a ressignificação das visões –
sociais – que se acercam, rotineiramente, destas questões. Por vezes, de modo
equivocado e ou de forma a instituir procedimentos de saber e poder que não
auxiliam, necessariamente, os indivíduos ali dispostos.
No caso mais específico da prisão, o sujeito envolto no campo de pesquisa,
que vivência e problematiza o cotidiano desta instituição é atravessado por uma
série de questões, regulamentos, ações esperadas/regulamentadas, que muitas
vezes passam desapercebidas por grande parte da sociedade. Pelo imaginário
da sociedade. A complexidade deste lócus impõe, para os que ali convivem,
por vezes, situações que referendam problemas muito próprios deste ambiente.
Além disso, como um local de sofrimento, envolto por diversos problemas,
este ambiente tende a ser perpassado por transtornos, em seu cotidiano.
Compreender este processo, mesmo que por meio de uma instância específica,
deve nos colocar diante de capacidade de compreender as ações praticadas na
instituição; sem que se faça, de antemão, procedimentos moralistas ou formas
de interpretação, das pessoas e do ambiente, descoladas do contexto ali vivido.
Foi o que buscamos fazer, na medida do possível, a partir de um
estudo mais direcionado ao Conselho Disciplinar, que sedimentava/sedimenta
estratégias e ações voltadas ao controle/estimulação do comportamento a ser
adotado pelos apenados, durante a realização de suas penas, na PEFB. O
Conselho Disciplinar, portanto, apresentou-se como lugar privilegiado para se
compreender a complexidade que envolvia/envolve o comportamento adotado,
tanto por parte dos apenados quanto por parte dos funcionários que trabalhavam
no ambiente prisional citado, no ano de 2019.
Ambiente atravessado por uma complexa teia de relações, interações, que
situavam/situam, por um lado, os policiais penais que ali trabalhavam/trabalham,
em um lugar de apreensão; uma vez que estes servidores penitenciários se
sentiam/sentem acuados diante da condição em que se encontram (11). Por outro
lado, existem os sujeitos na condição de aprisionamento, sempre sagazes e
aptos por uma oportunidade para tentarem empreender a fuga. O que os coloca
como potenciais infratores diante das condições impostas pela Lei e pelas
práticas prisionais desencadeadas.
Ponto que nos faz observar, novamente, a importância do Conselho
Disciplinar, uma vez que é por meio deste aparato institucional que a prisão lida,
de forma mais explicita, com a questão das infrações cometidas pelos apenados.
Fato que, em ocorrendo, coloca todo o sistema prisional em alerta, levando a
instituição a adotar medidas punitivo/corretivas diante de tais ações.
Entendemos ser importante explicitarmos o fato de que diante do ato
infracional, o agente penitenciário penal - que presencia tal fato -, redige um
comunicado (12), relatando a conduta disciplinar do preso. Tal comunicado é
enviado para avaliação da Direção prisional, da chefia de segurança e do
Conselho Disciplinar da unidade. A trajetória da transgressão disciplinar, desde
sua anotação até a respectiva aplicação da falta, é atravessada por fecundas
relações de poder e saber, que perpassam desde a subjetividade do infrator até
a interpretação – feita por parte das respectivas autoridades, dos respectivos
profissionais – do ato considerado infracional.
Questões que tendem a gerar conflitos no interior da instituição prisional,
entre presos e funcionários; bem como, tendem a consolidar visões de ordem
moral/comportamental inerentemente ligadas à capacidade institucional de
imprimir ações, ditas disciplinares. Questões que chamaram nossa atenção, do
ponto de vista do estudo proposto.
Do ponto de vista do locus que serviu à pesquisa efetivada e que
redundou neste livro, informamos que a Penitenciária Estadual de Francisco
Beltrão – PEFB (13) - se constitui enquanto um importante campo investigativo,
diante de questões que se voltaram para as relações disciplinares que ali se
processavam. Para além disso, cabe destacar que a Penitenciária Estadual de
Francisco Beltrão é visitada constantemente por diversas instituições, dentre elas
escolas, igrejas, universidades, organizações não-governamentais, etc. Além
disso, a administração da unidade prisional, com autorização do Departamento
Penitenciário do Paraná – DEPEN (14) -, permite que ali sejam desenvolvidos
estágios, estudos, por parte de inúmeros campos do saber.
Do ponto de vista do campo da educação, área de onde partimos para
observarmos o tema proposto, buscamos tecer uma relação entre os saberes/
poderes advindos do universo comportamental – disciplinar –, dos presos, regido
pelo CD; e as demais instâncias de regulação de comportamentos presentes no
interior da instituição prisional. De modo a refinarmos a relação entre disciplina
prisional e ato educativo. Até porque não há uma pedagogia específica,
diretamente direcionada aos ambientes prisionais, dentre as propostas
pedagógicas existentes. Mesmo dentre àquelas de cunho progressista, ou
seja, àquelas que visam discutir as questões políticas (formas de dominação,
exploração, divisões sociais, etc), contribuindo para libertar os indivíduos
dominados das amarras institucionais, sociais, não há uma que se volte, de forma
específica, para os ambientes prisionais. Pedagogias como a desenvolvida por
Paulo Freire (1921-1997) – o nome mais célebre ligado a uma prática pedagógica
progressista - embora apontem para o fato de que “a educação é o processo
constante de criação do conhecimento, e de busca da transformação-reinvenção
da realidade, pela ação humana” (DA COSTA, 2015, p. 77), e para o fato de que
o ato educativo gira em torno do sujeito, enquanto autor de sua trajetória; não
desenvolveram um olhar mais específico para a questão prisional.
Da mesma forma, leituras desenvolvidas por autores importantes da
Sociologia Latino-Americana como Florestan Fernandes (1920-1995), que
pensou a educação enquanto também do ponto de vista progressista, como
“elemento crucial para o reajustamento do homem a situações sociais que se
alteram celeremente” (SAVIANI, 1996, p.76), ou como aquela atividade humana
que “deve ter como objetivo supremo a afirmação da liberdade, originalidade e
autonomia ética do indivíduo” (SAVIANI, 1996, p. 80); também não pensou uma
educação específica, a ser alocada nos ambientes prisionais.
Outros autores terceiros mundistas, importantes, tais como Franz Fanon
(1925-1961), que analisaram a educação por meio do “estudo das inter-relações
que se estabelecem no plano do pensamento e as interconexões que ocorrem
através de inúmeras razões, entre elas a existência do colonialismo e suas
interconexões” (ARANTES, 2011, p.407), mesmos atentos para os aspectos
de dominação colonial, ao apresentarem uma visão da educação fortemente
calcada em bases de coloniais, não propuseram uma pedagogia diretamente
ligada ao universo prisional.
O pensador colombiano Orlando Fals Borda (1925-2008), apresentado no
artigo intitulado: “Fontes da educação popular na América Latina: contribuições
para uma genealogia de um pensar pedagógico de colonial”, desenvolvido pelo
pesquisador João Colares da Mota Neto (2019) (15), traz a ideia de uma pedagogia
de colonial, vista como “um conjunto de teorias-práticas de formação humana
que capacitam os grupos subalternos para a luta contra a lógica opressiva
da modernidade/colonialidade” (BORDA, 2019, p.209), dentro de uma lógica
progressista. Isto porque prega, como horizonte, “a formação de um ser humano”
(BORDA, 2019, p. 209) e de uma sociedade livre, amorosa, justa e solidária; por
meio da qual a educação considere o sujeito como protagonista de sua história.
Vemos, aqui, mais uma ideia de educação atrelada a um ideário progressista, mas
que não desenvolve um olhar específico para o campo da educação prisional.
Percebemos, deste modo, que autores Latino Americanos importantes,
que atuaram ou atuam no campo da educação progressista não desenvolveram
um olhar voltado ao campo prisional. O que não tira o mérito, em absoluto, de
nenhum deles. Mas aponta para o fato de que no ambiente prisional as ações
educativas, feitas por pedagogos, e que levam em consideração algum método
pedagógico, específico, se processam como fontes advindas de outros meios, de
outros ambientes sociais. Além disso, estas experiências educativas transcorrem,
no interior das prisões, a par de outras experiências e práticas institucionais.
Todas elas voltadas a instigar determinadas formas de comportamento, por
parte dos presos. Práticas que podem ser, também, analisadas enquanto ações
educativas (disciplinares).
Assim, diante das considerações elaboradas, buscamos compreender
o cotidiano prisional a partir dos seguintes questionamentos: O papel a ser
exercido pela educação, dentro do sistema penitenciário, está limitado a atuação
do pedagogo e ou do professor prisional enquanto processo formal/educativo
que é ofertado aos apenados, como forma de remição (16) de suas penas? Existe
uma perspectiva pedagógica que capacite docentes para atuarem, de forma
específica, dentro dos contextos prisionais? Existe uma perspectiva pedagógica
mais adequada ao campo institucional, prisional? Seria a pedagogia tradicional?
Seria a pedagogia crítica? Ou a pedagogia pós-crítica? Somente as correntes
pedagógicas, formais, exercem função educativa no interior das prisões?
Para nós, a instituição prisão é atravessada por práticas disciplinares/
educativas disseminadas por outras instâncias, tais como as encontradas no
Conselho Disciplinar. Até porque existe uma relação direta entre a disciplina
comportamental (disciplinar), prisional, direcionada aos apenados e a educação
‘formal’ efetivada nestes ambientes prisionais. Entre estas duas instâncias
existem proximidades e, no mínimo, relações de complementaridade. Isto
porque os apenados precisam apresentar bom comportamento para poderem ter
acesso à educação formal e ou às atividades que envolvem trabalho, no interior
das prisões. Questões que passam, necessariamente, pelo CD. Deste modo,
o comportamento adotado pelos apenados no interior da instituição prisional
antecede o seu acesso, ou não, à escolarização formal e ou à prática do trabalho.
Além disso, a proximidade entre disciplina comportamental e educação formal,
por parte dos presos, ocorre por meio de uma relação indireta, diante do fato
de que a disciplina construída no ambiente prisional alimenta certas formas de
sentir, pensar e agir, que tendem a complementar o que o campo da educação
formal espera, deste apenado, ao retornar à sociedade.
Ao questionarem a relação da educação com a prisão, os olhares menos
atentos tendem a reduzir o campo investigativo, da educação, apenas aos
processos formais, inerentes ao viés escolarizado. Ao fazerem isto deixam de
prestar atenção nas demais dimensões que envolvem a educação/socialização
dos indivíduos, feitas nas mais diversas instituições sociais, por meio de práticas
discursivas e de práticas institucionais que ocorrem no cotidiano institucional.
Da mesma forma, há leituras que olham para a prisão como o lugar de estrito
cumprimento de penas, diante dos crimes cometidos; ou ainda como o lugar
em que formas de assistência social devem/precisam ser fornecidas aos
apenados, para sua recuperação. Para nós, tais visões tendem a desenvolver
uma discussão que deixa escapar elementos de poder, microfísicos, que se
fazem presentes nestes ambientes e que envolvem estratégias institucionais –
dispositivos -, e resistências por parte dos apenados. Isto porque onde existe
poder, existe resistência.
Deste modo, a ideia de estudarmos a questão da disciplina enquanto
recurso prisional adotado para instituir formas de docilização comportamental, a
partir de um esquadrinhamento espaço/temporal, voltado a formatar os corpos/
comportamentos dos apenados, na PEFB – por meio da aplicação de saberes
e poderes, ou seja, de ações que visam consolidar visões de sujeito, do que
este deve absorver, no que deve se transformar -, tomou força ao analisarmos
o fato de que todo o aparato formal (leia-se jurídico), que se acerca do mundo
prisional – dotado, normalmente, de maior visibilidade -, é atravessado por outras
formas de saber e de poder existentes no interior dos ambientes prisionais. Isto
porque são os policiais penais os responsáveis por instituir procedimentos que
dão vida à prisão, tais como os encontrados no Conselho Disciplinar prisional; e
não códigos processuais, penais, etc, que existem mas que, se tomados em si
mesmos, encontram-se desconectados do dia a dia institucional.
Quando trazemos a discussão prisional, e mesmo a educativa, para
esta dimensão nos deparamos com os sujeitos que operam todo o dispositivo
disciplinar, imposto aos presos. Diante disto, nos perguntamos: Quais são as
competências exigidas para o exercício destas funções? Estas funções atuam
de forma educativo/comportamental? Como proceder para compreender este
processo?
O saber jurídico, o mais conhecido dentre àqueles que se articulam ao
derredor do campo prisional - por regulamentar normas de atuação, via Leis,
passíveis de serem adotadas no interior das instituições prisionais -, ao instituir
o que pode e o que não pode ser feito nestes ambientes, conforma um interdito
institucional. Todavia, os sujeitos que performam os ambientes institucionais não
se adéquam, sem resistência, às Leis, às normas. Entre o instituído e o instituinte
há uma distância, e esta distância geralmente é atravessada pela norma, ou
seja, pelas ações e pelos saberes que, para além do saber jurídico, atravessam
corpos e atuam de modo a perfazer ações comportamentais a serem acatadas
pelos encarcerados no interior das instituições prisionais.
Quando pensamos sobre estas estratégias, sobre as práticas advindas
destas estratégicas, pensamos em formas disciplinares voltadas à ação
cotidiana efetivada no interior das prisões. Neste sentido, nos perguntamos: A
disciplina opera como poder transformador de ações, na prisão? Ou a disciplina
atua, apenas, como correia transmissora da Lei? Que outros poderes e saberes
disciplinares atuam no cotidiano da prisão, via Conselho Disciplinar?
Deste modo, o tema do trabalho que desenvolvemos, enquanto pesquisa,
e que redundou no presente livro, ficou assim estabelecido: O Conselho
Disciplinar da Penitenciária Estadual de Francisco Beltrão - PR: a educação
dos apenados via disciplina institucional. Trabalho que teve como objetivo geral
problematizar o formato disciplinar, comportamental, direcionado aos apenados
da PEFB, através do Conselho Disciplinar existente nesta instituição, por meio
de uma atuação educativa.
Este objetivo geral desdobrou-se em objetivos específicos, que ficaram
assim estabelecidos: compreender como se constitui a problemática da instituição
“prisão” e o surgimento do dispositivo disciplinar prisional; consolidar uma leitura
institucional, de um ambiente prisional, por meio da base conceitual retirada
do pós-estruturalismo de base foucaultiana; propor uma discussão voltada
aos elementos que compõem as práticas do Conselho Disciplinar, existente na
Penitenciária Estadual de Francisco Beltrão; analisar as relações de saber e
poder, via dispositivo disciplinar, desencadeadas na Penitenciária Estadual de
Francisco Beltrão.
Entendemos como importante o trajeto efetivado pois quando buscamos
informações acerca de demais pesquisas, efetivadas em penitenciárias, no
sistema (tede.unioeste.br) e ou na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (17),
sobre dissertações feitas no Estado do Paraná, que continham o termo
“Penitenciária”, encontramos quatorze (14) resultados, abaixo elencados,
relacionados ao tema:
(ver apresentação do livro on line).
Dentre as quatorze dissertações encontradas e que mencionaram o termo
‘penitenciária’, apenas uma pesquisa teve como locus de pesquisa a Penitenciária
Estadual de Francisco Beltrão. Por meio do seguinte estudo: “Reflexões sobre
o processo de prisão e as consequências nas condições socioeconômicas para
famílias de presos da Penitenciária Estadual de Francisco Beltrão/PR”. Pesquisa
que teve como mote os aspectos e consequências que o aprisionamento gera,
no meio familiar, durante o período de cumprimento das penas.
Ainda em busca de mais pesquisas que evidenciassem assuntos a
respeito do sistema penitenciário local, refinamos a busca para o Campus de
Francisco Beltrão, por meio de pesquisas voltadas aos trabalhos realizados no
ano de dois mil e dezoito (2018), no Programa de Mestrado em Educação. Foram
encontradas 52 pesquisas publicadas, mas nenhuma especificamente adotou,
como campo de pesquisa, a Penitenciária Estadual de Francisco Beltrão.
Diante deste quadro, e diante dos argumentos aqui apresentados,
justificou-se a necessidade de estudarmos a educação do sujeito prisional, via
Conselho Disciplinar, por meio de análise efetuada na Penitenciária Estadual,
localizada na Penitenciária Estadual de Francisco Beltrão.
Como cerne do trabalho apareceram as relações de poder e saber
dispostas no ambiente prisional estudado. Cabe ressaltar, nesta direção, que
para Foucault (2018) a prisão representa um modelo disciplinar/institucional que
serve de parâmetro para se compreender a formatação social, contemporânea.
Ou seja, para se compreender a sociedade capitalista, chamada por Foucault
de sociedade disciplinar. Onde relações entre saberes e formas de exercício do
poder se entre mesclam. Daí a necessidade, segundo Foucault (2018), de se
desenvolver um outro olhar sobre o próprio poder.
De uma maneira geral, os mecanismos de poder nunca foram muito
estudados na história. Estudaram-se as pessoas que detiveram o
poder. Era a história anedótica dos reis, dos generais. Ao que se
opôs a história dos processos, das infraestruturas econômicas. A
essas, por sua vez, se opôs uma história das instituições, ou seja,
do que se considera como superestrutura em relação a economia.
Um assunto que foi ainda menos estudado é a relação entre o
poder e o saber, as incidências de um sobre o outro”. (2018,
p.230).
Estas relações de poder e saber, para Foucault, perpassam as relações
sociais e individuais. São relações assimétricas, mas não impedem os sujeitos
de se manifestarem. Isto porque o poder, aqui, é visto como algo que incita,
fomenta, por parte dos indivíduos, certas formas de ação, de manifestação.
O poder, então, não é àquilo que apenas impediria, mas àquilo que produziria
ação, que produziria o próprio sujeito. Inclusive o sujeito prisional. Entendemos
que este tema, diante das problemáticas até aqui apresentadas, se apresentava
como significativo e mereceria ser estudado, do ponto de vista prisional e dos
processos que intercruzavam a educação, não necessariamente formal, nos
ambientes prisionais. Para analisarmos tais questões efetuamos pesquisa por
meio de estudo de caso, na PEFB. Os resultados de tal pesquisa estão abaixo
relacionados.
1 Mais especificamente a Penitenciária Estadual localizada na cidade de Francisco Beltrão, Paraná.
2 Dados do sistema prisional em números referentes a disciplina no sistema penitenciário brasileiro:
Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/sistema-prisional-em-numeros Acesso em:
10/03/2019.
3 Michel Foucault (1926-1984) foi um dos mais importantes filósofos do século XX. Caracterizou-se, dentre
outras coisas, por desenvolver um estudo sobre o encarceramento, na década de 70 do século XX,
que alcançou enorme repercussão.
4 Foucault em entrevista transcrita no livro: “Microfísica do Poder” (2018), traz a definição de dispositivo
como: “um conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas,
decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo” (FOUCAULT,
2018, p. 244).
5 O termo preso ou o termo apenado será adotado neste texto a partir de diversas referências encontradas,
sem distinção de gênero ou número, ou seja, conforme o contexto, poderemos nos referir a preso/
presa, presos/presas; interno/interna, internos/internas.
6 BRASIL. Lei de execução Penal. Lei nº 7210 de 11 de julho de 1984. A LEP confere os dispositivos
regulamentares para o cumprimento das penas de prisão no Brasil.
7 As faltas disciplinares classificam-se em leves, médias e graves. A legislação local especificará as leves
e médias, bem como as respectivas sanções. Parágrafo único. Pune-se a transgressão com a sanção
correspondente à falta consumada.
8 LEP – sigla que se refere à Lei de Execução Penal nº 7210/84.
9 A tipologia e as implicações das faltas serão explicadas detalhadamente no decorrer desta dissertação.
10 O Conselho Disciplinar é a instância – elemento que atua como um dispositivo - que trata administrativamente das faltas disciplinares cometidas durante a execução das penas. É apresentado no capítulo
IV do Estatuto Penitenciário do Paraná - Decreto Estadual nº. 1276 de 31 de outubro de 1995 - e tornado
público pelo Diário Oficial nº. 4625 de 31 de outubro de 1995. (...) O Conselho Disciplinar, existente em
cada estabelecimento prisional, será composto por um secretário, que é relator, quatro técnicos e um
defensor, sendo presidido pelo diretor da prisão.
11 Ressaltamos, aqui, que o Estado geralmente se apresenta com carências de subsídios. O que redunda
em questões como, por exemplo, as do baixo efetivo de profissionais que fazem plantão na penitenciária.
Colocando em risco todo um aparato de segurança institucional e fazendo com que sejam praticamente
ineficazes a utilização de câmeras, sirenes e portas automatizadas nesta instituição.
12 Documento interno que relata a conduta delituosa do preso, que posteriormente reporta-se a um relatório
diário que sinaliza para o fato de que a ação praticada poderá sofrer posterior apuração, por parte
do Conselho Disciplinar prisional, conforme descrito nas normas presentes no Estatuto Penitenciário do
Paraná.
13 PEFB – sigla que se refere à Penitenciária Estadual de Francisco Beltrão.
14 DEPEN - sigla que se refere ao Departamento Penitenciário do Paraná.
15 Fontes da educação popular na América Latina: contribuições para uma genealogia de um pensar
pedagógico decolonial. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=
S0104-40602019000600207&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 09/08/2020.
16 A remição de pena é um benefício que o preso desfruta ao trabalhar e estudar durante o percurso da
pena, que lhe confere a cada três dias de trabalhado/estudo, um a remir de sua pena.
17 Pesquisa realizada com o termo ‘penitenciária’ no banco de dados da Biblioteca Digital de Teses e
Dissertações – TEDE.
A educação das pessoas privadas de liberdade, via disciplina prisional
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DOI: 10.22533/at.ed.091230507
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ISBN: 978-65-258-1509-1
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Palavras-chave: 1. Prisioneiros - Educação. I. Tozetti, Rodrigo Luiz. II. Jacondino, Eduardo Nunes. III. Título.
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Ano: 2023
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Número de páginas: 159