Refugiados em novos contextos e cenários: análise bioética
Publicado em 06 de março de 2024.
Fluxos migratórios moldam as populações humanas desde o início dos tampos. Talvez o mais conhecido seja a travessia do Estreito de Behring, durante a última era glacial, há 20.000 anos atrás, trazendo o homem, e outras espécies, é sempre bom lembrar, para o continente americano. Na região do pacífico, há cerca de 5000 anos, populações da região de Taiwan, se utilizando de suas habilidades de navegadores, colonizaram as ilhas do Pacífico, chegando a lugares tão distantes quanto Havaí, Nova Zelândia e Ilha de Páscoa. Esses fluxos migratórios se deslocaram por vários motivos, e provavelmente um dos mais comuns tenham sido os conflitos internos e os grandes eventos climáticos. Ao longo do tempo, essa migração acabou por fundar hábitos, costumes, a gerar grupamentos humanos que nos legaram tradições como a Haka, dança de guerra criada pelos Maori, realizada hoje, em 2024, pela neozelandesa Hana-Rawhiti Maipi-Clarke, a mais jovem deputada a tomar posse no parlamento da Nova Zelândia, em honra aos seus antepassados. Os habitantes da ilha de Páscoa nos legaram os gigantescos moai, estátuas de pedra que até hoje dão testemunho da presença dos seus construtores, mas que também nos alertam para a destruição do meio ambiente pelo próprio homem, que parece ter dizimado todas as árvores da Ilha, a tornando inabitável, e gerando um novo fluxo migratório.
Esses fluxos de pessoas, ocorrido há milhares de anos, se deram quando havia vastos espaços de terras a conquistar, onde o homem era a princípio nômade, caçador e coletor, se estabelecendo em pequenos grupamentos, vilas e aldeias, que deram origem às cidades de hoje. Cidades são grupamentos humanos complexos, com regras e propósitos próprios, que se transformam dia a dia, como organismos vivos, e podemos nos perguntar se elas são moldadas pelos seres humanos que nela habitam ou se elas os moldam. Se formos pensar nas primeiras cidades criadas pelos colonizadores portugueses no Brasil, como o Rio de Janeiro, criado em 1565 como uma vila colonial, focada na defesa e exploração de recursos naturais, focada no estrategismo militar e no controle da população, fortemente estratificada entre senhores, detentores do poderio e da tecnologia militar, clero, representantes do poder moralizante e controlador da igreja, e da população de servos e escravizados. O modelo de sociedade, e consequentemente o das cidades, também foi se modificando. E eu acho que continua sendo difícil dizer se a sociedade molda a cidade ou se a cidade molda a sociedade. Na década de 50, tivemos a construção de Brasília, inovadora sob vários aspectos, visando uma maior funcionalidade e ordenamento do espaço urbano, mas de certa forma ainda com uma visão segregacionista e sem muita preocupação com a sustentabilidade. Mesmo nos dias de hoje, quem anda por Brasília percebe que a cidade foi feita para se andar de carro, entre os vários setores (comercial, residencial, de hoteleiro, bancário, industrial). Já na sua construção Brasília contou, e de certa forma gerou, um grande fluxo migratório, o dos “calangos”, trabalhadores nordestinos, muitos vindos como refugiados dos problemas econômicos e climáticos do nordeste brasileiro, em busca de uma vida melhor. Vieram pela promessa de trabalho e de uma vida digna em Brasília, e acabaram, moldando as cidades-satélites em seu entorno, fundadas a partir dos seus primeiros assentamentos, e que se desenvolveram como cidades, conhecidas hoje como locais de segregação socioeconômica, pobreza e violência. Brasília foi um projeto de cidade “artificial”, ou criada do nada, que se esqueceu de ser talvez um pouco mais inclusiva e acolhedora em sua origem. Hoje ainda existem projetos de cidades “artificiais”, mais ousados, modernos e sustentáveis, como o “The Line”, anunciado em 2021 como um projeto de cidade linear de 170 Km de comprimento, sem carros e ruas, com acesso a todas as facilidades e recurso a pé, tendo a sustentabilidade como seu pilar principal, operando apenas com energia renovável, com uma pegada de carbono mínima e totalmente integrada com a natureza. Uma cidade feita para moldar seus habitantes. Mas será realmente assim, uma cidade contida em uma redoma de vidro?
No mundo atual, o que percebemos é que cidades e populações estão em constante transformação, em movimentos de fluxo e refluxo, formando e sendo formadas pelas populações que chegam e que partem, movidas pelas guerras, fatores climáticos e econômicos. Cidades são construídas, como as novas cidades pré-fabricadas segundo um ordenamento e planejamento rígido, na China, mas são também destruídas, como vemos atualmente nas guerras da Ucrânia com a Rússia e na Palestina com Israel. Catástrofes climáticas como os terremotos e inundações do Haiti e a elevação do nível dos oceanos que ameaça submergir Tuvalu, na Polinésia. A crise econômica da Venezuela vem gerando uma grande quantidade de refugiados que chegam às cidades de Boa Vista e Pacaraima, no estado de Roraima. Esses fluxos humanos sempre existiram, e parece que não cessarão de existir na história da humanidade, e mais do que isso, parecem moldar o percurso da própria humanidade. Porém como lidar com essas questões? Essa é a proposta desse livro, que de uma forma bastante lúcida, se debruça sobre questões fundamentais a esse respeito. Seu mérito principal é colocar essas questões sobre a perspectiva da bioética ambiental, vista aqui sob uma perspectiva ampla, não associada apenas à natureza, e que não oferece apenas diletantismo intelectual, mas uma proposta de se utilizar um conjunto de valores reflexivos como ferramentas para solucionar problemas complexos do mundo real. O livro abraça a proposta de que as cidades inteligentes podem lidar com mais eficiência com a assimilação de refugiados, através da tecnologia e inovação como ferramentas de uma maior participação cidadã, baseada em conceitos de sustentabilidade e de uma ética de hospitalidade e acolhimento, integrando de forma eficaz os seus novos cidadãos como participantes integrados a esse organismo da cidade. Os autores nos ajudam a compreender os fluxos de migração históricos em nosso país e as questões políticas e sociais que colaboraram para a formação de nossa nação. Alerta também para a premente necessidade de considerarmos como refugiados aquelas pessoas que se deslocam por questões associadas às mudanças e catástrofes climáticas, nos chamando à realidade para a nossa responsabilidade quanto às consequências do aquecimento global, que com certeza influenciará em grande parte dos fluxos migratórios nas próximas décadas. Não são esquecidos aqui também os animais, que se tornam também refugiados ou são abandonados por seus donos nessas situações extremas, um debate primordial quando falamos cada vez mais de questões como a senciência animal e o reconhecimento desses como sujeitos de direito. Por fim, os autores trazem uma proposta pedagógica concreta à adaptação e representatividade dos refugiados, criando uma ponte entre o que acolhe e o que é acolhido, através do teatro. Nessa experiência, busca-se resgatar os dilemas vividos pelos refugiados, permitindo a esses tornar visíveis suas dores, e torná-las visíveis àqueles que o acolhem, humanizando essa relação.
Refugiados em novos contextos e cenários: análise bioética
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DOI: https://doi.org/10.22533/at.ed.198242202
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ISBN: 978-65-258-2219-8
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Palavras-chave: 1. Refugiados. 2. Bioética. I. Pieri, Lucas Guimarães. II. Fischer, Marta Luciane. III. Renk, Valquiria Elita. IV. Título.
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Ano: 2024
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Número de páginas: 128