Ebook - Raízes da Razão AndrocêntricaAtena Editora

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1. Crítica do androcentrismo. 2. Feminismo e filosofia. I. Carvalho, Guilherme P...

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capa do ebook Raízes da Razão Androcêntrica

Raízes da Razão Androcêntrica

Publicado em 02 de fevereiro de 2024.

Quando um homem decide falar sobre a história das mulheres, mais especificamente, sobre a história das ideias olvidadas das mulheres, há que se pensar que um deslocamento paradigmático aconteceu no posicionamento deste homem e na razão que o leva a questionar a sua consciência e a de cada pessoa sobre os valores culturais, simbólicos e estruturais que colocaram as mulheres no eclipse da história da humanidade.
No livro “Raízes da Razão Androcêntrica”, Guilherme Paiva de Carvalho apresenta um retrospecto genealógico da Filosofia Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea, a fim de constatar que as bases epistemológicas deste campo do saber ergueram os muros para conter e alijar os modos de pensar das mulheres enquanto filosoficamente válidos e reconhecidos. Portanto, presta-se ao serviço de recuperar a história das ideias dessas mulheres que produziram discursos e formularam pensamentos no contexto em que viveram e exerceram contrapontos às ideias hegemônicas e à dominação masculina.
O autor inicia o livro localizando sua identidade, centrada na figura masculina e na cultura ocidental do homem branco/mestiço, afro-latino e de classe média, de modo a admitir as raízes da razão androcêntrica fincadas em sua subjetividade, os valores culturais de raça, classe e gênero que também produzem raízes simbólicas e privilégios sociais em relação ao discurso das mulheres. Todavia, mantendo algumas periferias e procurando refletir e desarrumar em si a constelação dos valores hierarquizantes e excludentes relacionados à inferiorização atribuída às mulheres, segue a esteira de Grada Kilomba (2019) quando aconselha que o sujeito branco deve se perguntar sobre as raízes de seu próprio racismo e iniciar aí o seu processo de desmantelamento.
Abre-se, com isso, uma porta de entrada para o debate sobre o comportamento masculino e a masculinidade dominante, para além das performances de gênero, mas nos planos das relações sociais e dos paradigmas filosóficos e científicos e o lugar que os homens-brancos recorreram na construção de tal pensamento falocêntrico.
No argumento alavancado, a razão androcêntrica aparece emaranhada nos valores culturais e no pensamento filosófico enquanto fonte de ideias que se retroalimenta dos discursos ocupados nos espaços de poder. Deparamo-nos com a constatação de que desde a origem da filosofia ocidental aparecem as concepções atribuídas às mulheres enquanto passivas e responsáveis pelos cuidados no lar e aos homens enquanto aptos a exercerem as posições de poder e ocupando os espaços públicos. No decorrer da história da Filosofia, esta se alia às estruturas simbólicas das sociedades ocidentais, tais como a razão eurocêntrica, o patriarcalismo e o colonialismo, contribuindo para a invisibilidade das mulheres enquanto história de seres que pensam e que também estão na base da Filosofia.
Malgrado a inferiorização e exclusão, o pensamento das mulheres está presente desde a Antiguidade até a Contemporaneidade e este livro é uma prova deste fazer. Após conhecer a filosofia feita por estas mulheres, tal como apresentadas por Guilherme de Carvalho, não se pode mais reproduzir, a pretexto de ignorância, a afirmação de que as mulheres não servem para ocupar espaços públicos, políticos, científicos e filosóficos. Pelo contrário, o silenciamento das mulheres, em todas as instâncias, é parte das artimanhas que reforçam as relações de dominação e desigualdade de gênero.
A razão androcêntrica destrinçada nesta obra tem, pois, suas raízes radicadas na exclusão de grupos étnico-raciais não europeus, no cristianismo, no patriarcado, na educação formal, nas concepções que impõem padrões de comportamento para mulheres e sua subserviência aos homens e na recusa genealógica das práticas e discursos das mulheres. 
Essas páginas estão povoadas por filósofas da Antiguidade até a Contemporaneidade. Mas o autor almeja se contrapor aos discursos de um olhar epistemológico masculino, que serviram até aqui para depreciá-las e estigmatizá-las. Vê-se detidamente refletidas as perspectivas filosóficas de Safo de Lesbos, Hipácia de Alexandria, Hildegarda de Bingen, Émile du Châtelet, Olympe de Gouges, Nisia Floresta, Simone de Beauvoir, Ângela Davis, bell hooks, Judith Butler, Nancy Fraser, Vandana Shiva, Oyèronké Oyӗwùmí e María Lugones. Atravessadas a essas mulheres, outras mulheres reforçam as interpretações sobre o predomínio da cultura patriarcal, sexista, racista e classista no Ocidente. Dona Haraway, Lelia Gonzalez, Sandra Harding, Guacira Louro, Djamila Ribeiro, Glória Anzaldúa, Gayatri Spivak, dentre outras. Um celeiro abundante de mulheres que referem seus discursos à realidade sociopolítico cultural e ao pensamento filosófico.
O livro é atravessado pela referência foulcautiana do seu autor, que se serve do filósofo francês para reforçar as características do pensamento filosófico enquanto sexista e legitimador da cultura ocidental de modo a justificar as relações de poder que reproduzem as desigualdades de gênero, desde a moral produzida na Antiguidade Clássica Greco-Romana enquanto cerne da valorização da virilidade, fundamental para o contexto de organização das sociedades ocidentais, permanecendo presentes na ética cristã e na moral das sociedades modernas europeias.
Ademais, os dados apresentados são resultado de projeto de pesquisa do professor-pesquisador e do conhecimento produzido no âmbito da graduação e pós-graduação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte por outras tantas mulheres que estabeleceram com o autor a relação de pesquisadoras orientadas e também colaboraram reconhecidamente para a difusão do conhecimento dessas filósofas e seus pensamentos críticos. As pensadoras são apresentadas de maneira não monolíticas, a cada uma é dada sua relevância singular e são nuançados seus posicionamentos teóricos.
O livro se inscreve num exercício de releituras, contribuições teóricas e compêndio. A título de releitura, cito a poesia e a filosofia de Safo de Lesbos. A exemplo do esforço de Anne Carson (2022), no livro Eros, o Doce-Amargo, Guilherme Paiva apresenta aspectos do pensamento de Safo de Lesbos, sua posição enquanto fundadora de uma escola e suas reflexões sobre a physys e as características do pensamento e da subjetividade humanas a partir da memória. Por seu turno, Anne Carson (2022), recupera o conceito de glukupikron de Safo para lembrar sobre o drama da situação erótica em que o desejo comporta ao mesmo tempo prazebilidade e amargura, paradoxo presente até hoje no debate sobre o desejo.
Outro livro contemporâneo foi organizado por Flávia Rios e Márcia Lima (2020), intitula-se Por um Feminismo Afro-Latino Americano e faz uma recuperação de escritos de Lélia Gonzalez e um apanhado de sua contribuição na constituição do feminismo negro na América Latina. Apontamento semelhante faz Guilherme de Carvalho, quando apresenta, por exemplo, as contribuições teóricas da autora negra norte-americana bell hooks e sua referência indispensável para pensarmos os processos de socialização que constituem os modos de subjetivação do sexismo tanto para homens quanto para mulheres.
Em termos de compêndio, nota-se um viés de escritura que ficou marcado pelo quarteto publicado por Heloísa Buarque de Hollanda com os livros: Pensamento Feminista: conceitos fundamentais (2019), Pensamento Feminista Brasileiro. Formação e Contexto (2019); Pensamento Feminista Hoje. Sexualidades no Sul Global (2020); Pensamento Feminista Hoje; Perspectivas Decoloniais (2020). Nesse quarteto, a autora organiza republicações de textos emblemáticos de mulheres que são referências teóricas e paradigmáticas na construção do pensamento feminista no Brasil e no Sul Global. Guilherme Paiva, então, recupera estudos e reflexões em torno de mulheres que também foram fundadoras de modos de pensar as questões relacionadas ao feminismo e gênero, a exemplo de Judith Butler, que compreende a categoria gênero numa teia intrincada de relações de poder, que define, inclusivamente, a categoria mulher.
A despeito da hierarquia territorial/regional demarcada na produção científica e nos parâmetros do cânone acadêmico, esta obra dialoga com recentes e importantes produções e publicações sobre o pensamento feminista, sobre racismo, sobre escrita feminina e pensamento decolonial. Outros estudiosos das pensadoras são também mobilizados, dado que insere o livro na teia das pesquisas acadêmico-científicas.
O texto está eivado de casos estéticos da cultura ocidental contemporânea, perpassando citações da publicidade brasileira. Aparece, então, a boneca Barbie, que no ano de dois mil e vinte e três (2023) ganhou notoriedade no cinema, vindo às telas pelas lentes de Greta Gerwing, diretora norte-americana que tentou estabelecer uma crítica sobre o patriarcado através da boneca que influenciou o imaginário de crianças ocidentais. Guilherme de Carvalho relembra ditos da boneca e suas repercussões na fixação dos estereótipos de socialização de gênero e os papéis sexuais de homem e mulher.
O autor expõe importantes questionamentos, dentre eles, a possível universalização da dominação da mulher a partir das relações de gênero. De modo que o estudo sobre a sociedade iorubá empreendido pela socióloga africana Oyèronké Oyӗwùmí é apresentado como alternativa para compreendermos o modo como a categoria gênero foi implantada na sociedade iorubá que desconhecia a categoria mulher e outras denominações para diferenciação entre os sexos biológicos. Um exemplo de organização social que não se baseia na dicotomia sexo/gênero enquanto modo de distribuição de privilégios e poder. A alteridade cultural provocada por Oyӗwùmí ressignifica a noção de dimorfismo sexual e o discurso universal de que as mulheres sempre foram submissas em todas as culturas e contextos históricos.
Salvo destacar a menção à filósofa latino-americana María Lugones e suas reflexões sobre a modernidade colonial e a colonialidade de gênero que a partir da dicotomia hierarquizada estabelece os indivíduos considerados humanos e não humanos. A dicotomia de gênero se faz instrumento de redução da humanidade da mulher, como o estereótipo do homem branco, europeu e cristão serviu para desumanizar os povos originários.
Enquanto contraponto à razão androcêntrica, o autor sugere os caminhos para a formação de uma racionalidade inclusiva. Esta precisa atuar nas diferentes esferas da linguagem, do pensamento e da prática. Sua urgência é proporcional à necessidade de preservação da existência humana no planeta, colocada em risco por uma racionalidade androcêntrica que estabelece a guerra e as dominações subjetiva, colonial, política e econômica enquanto paradigma das relações de poder e das relações entre as pessoas, e das pessoas com as ideias, os seres e as coisas.


Karlla Christine Araújo Souza
Mossoró, 05 de novembro de 2023


REFERÊNCIAS

CARSON, Anne. Eros: o doce-amargo: um ensaio. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.

DE HOLLANDA, Heloísa Buarque. Pensamento Feminista: Conceitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo: 2019.

DE HOLLANDA, Heloísa Buarque. Pensamento Feminista brasileiro: Formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo: 2019.

DE HOLLANDA, Heloísa Buarque. Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo: 2020.

DE HOLLANDA, Heloísa Buarque. Pensamento Feminista Hoje: Sexualidades no Sul Global. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo: 2020.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização Flávia Rios, Márcia Lima. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo cotidiano: Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
 

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Raízes da Razão Androcêntrica

  • DOI: https://doi.org/10.22533/at.ed.648243101

  • ISBN: 978-65-258-2264-8

  • Palavras-chave: 1. Crítica do androcentrismo. 2. Feminismo e filosofia. I. Carvalho, Guilherme Paiva. II. Título.

  • Ano: 2024

  • Número de páginas: 103

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