Psicanálise: mentores, paradigmas e construtos
Preliminarmente, desde sua origem, a psicanálise se impôs como uma experiência de descentramento. Não nasceu como ciência exata nem se constituiu a partir de um saber fechado, mas emergiu de um gesto ético de escuta — o de acolher o sofrimento psíquico para além da lógica médica e da racionalidade positivista.
Destarte, a partir de Freud, a clínica passou a ser atravessada pelo inconsciente, revelando que os sintomas dizem mais do que aparentam, que a fala pode conduzir à verdade do sujeito e que o desejo, por mais recalcado, insiste em se manifestar. Esta obra nasce do esforço de pensar essa tradição e suas múltiplas atualizações: um percurso reflexivo, que se estrutura na articulação entre conceitos fundamentais e a escuta das inquietações do presente.
Entretanto, não se trata, aqui, de organizar um manual ou de oferecer uma cronologia linear dos marcos teóricos da psicanálise. Ao contrário, o propósito deste trabalho é compor um olhar analítico e crítico, atento às diferentes vertentes que constituem o campo psicanalítico e às transformações pelas quais ele passou, do século XIX até a atualidade.
Por conseguinte, a gênese do pensamento freudiano é o ponto de partida inevitável — não por fidelidade ao autor, mas porque ali se instaurou o corte que possibilitou a emergência do sujeito do inconsciente. Termos como aparelho psíquico, pulsão, sexualidade infantil, complexo de Édipo e mecanismos de defesa não são apenas categorias técnicas: são operadores conceituais que nos convidam a pensar a subjetividade como campo de conflito, linguagem e criação.
De outro vértice, à medida que o século XX avança, a psicanálise se abre a novos interlocutores e novas demandas clínicas. Autores como Melanie Klein, Wilfred Bion e Donald Winnicott expandem a compreensão da infância, do desenvolvimento emocional e da constituição do eu, incorporando a dimensão relacional de forma mais explícita. Carl Jung propõe um mergulho no simbólico e no inconsciente coletivo, enquanto Jacques Lacan recupera a centralidade da linguagem, relendo Freud à luz do estruturalismo, da linguística e da filosofia. Suas contribuições reorientam a prática clínica, oferecendo novos modos de entender o sofrimento, a transferência, o sintoma e o lugar do analista.
Contudo, a psicanálise não se esgota em seus fundadores e reformuladores clássicos. Ela permanece viva na medida em que se reinventa diante das transformações culturais, políticas e sociais do mundo contemporâneo. Nesse sentido, autores como Christian Dunker, Joel Birman e Vladimir Safatle oferecem perspectivas instigantes para pensar a psicanálise como dispositivo crítico — não apenas no campo clínico, mas também no espaço público, nas instituições e na cultura.
Suas abordagens ampliam o alcance da escuta analítica, atravessando os limites do consultório para dialogar com os dilemas da subjetividade contemporânea: medicalização da vida, patologização da diferença, neoliberalismo, sofrimento ético-político.
Destarte, o estudo demanda mapear esse território amplo e poroso que é o campo psicanalítico, observando tanto suas bases conceituais quanto suas articulações com outros saberes. A interlocução com áreas como a saúde pública, a educação, as ciências sociais e a filosofia revela o potencial da psicanálise como ferramenta de leitura do humano — não apenas em sua interioridade psíquica, mas como ser histórico e inserido em redes de significação.
Mormente,, este livro dedica atenção ao papel da psicanálise nos dispositivos do Sistema Único de Saúde (SUS), onde se confronta com realidades marcadas por precariedade, exclusão e urgência. Nesses contextos, o desafio da escuta ganha outra densidade: escutar, aí, é sustentar a singularidade onde tudo tende à normatização.
Por conseguinte, a clínica psicanalítica contemporânea se vê, portanto, diante de uma exigência dupla: manter-se fiel a seus princípios fundadores — como a centralidade do desejo, da transferência e da fala — e, ao mesmo tempo, reinventar-se frente às novas formas de sofrimento, subjetivação e laço social. Isso implica reconhecer que o setting tradicional nem sempre é possível, que o tempo analítico precisa se flexibilizar, que o analista deve se reposicionar eticamente diante de sujeitos atravessados por múltiplas violências e silenciamentos. Mais do que um método, a psicanálise é, aqui, pensada como um gesto — um gesto que sustenta o vazio, que acolhe o não-sabido e que se orienta por uma ética da escuta.
Em um tempo marcado pela aceleração, pelo pragmatismo e pela desvalorização da palavra, a psicanálise se afirma como resistência. Resistência ao discurso técnico que reduz o sujeito ao sintoma, à lógica produtivista que descarta a escuta, à patologização generalizada que transforma diferenças em diagnósticos. Este livro reafirma a aposta na psicanálise como um campo de leitura sensível da cultura e da subjetividade, capaz de revelar o que escapa às métricas e de afirmar a singularidade em meio ao ruído das normativas.
Em epítome, a psicanálise sobrevive — e se renova — justamente porque não oferece soluções prontas, mas convida ao trabalho de elaboração, à escuta do que insiste, ao cuidado com o que não se deixa dizer facilmente.
Prof. Dr. Adelcio Machado dos Santos
Psicanálise: mentores, paradigmas e construtos
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DOI: https://doi.org/10.22533/at.ed.581252910
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ISBN: 978-65-258-3758-1
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Palavras-chave: 1. Psicanálise. I. Santos, Adelcio Machado dos. II. Título.
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Ano: 2025
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Número de páginas: 79