O corpo político na instituição de arte: Estudos sobre a 24ª e a 33ª edições da Bienal de São Paulo
Publicado em 13 de dezembro de 2022.
Recebi o convite de Elaine Fontana para fazer o Prefácio ao Livro “O Corpo Político
na Instituição de Arte com muita surpresa. Minha alegria em saber que seu trabalho
de mestrado seria publicado foi aquela de uma amiga que se vê presente nas realizações
da outra. Sou amiga de Elaine há cerca de 20 anos e nossa aproximação se deu em
um ambiente de trabalho bastante estranho ao que cada uma de nós fazemos hoje – eu,
professora de disciplinas ligadas à política e aos estudos de gênero; ela, estudiosa e
profissional da educação e dos estudos de arte.
Elaine iniciou, portanto, seus estudos sobre arte visuais já adulta, exercendo outra
vida profissional e estudando teatro na adolescência; eu sempre fui uma espectadora
atenta, que se encantava com a possibilidade de ver presencialmente obras que estavam
em livros ou que viriam a estar. Não havíamos tido uma formação paulatina em arte desde
a infância, mas isso em nada impediu que nos entregássemos à experiência subjetiva e
também política do contato com acervos e obras de arte.
A arte foi o principal terreno em que nossa amizade foi cultivada, quando éramos
colegas em um escritório de advocacia. Muitas de nossas melhores conversas se deram
em instituições de arte. Por meio do caminho profissional de Elaine eu também fui deixando
de ser a espectadora voraz que fugia das “visitas guiadas” para me tornar uma espectadora
que buscava mais o porquê do espanto que certas obras lhe despertavam. Nesse caso,
uma visita mediada não esgotaria o conhecimento das obras de um museu ou de uma
exposição, mas seria um bom ponto de partida para a experiência individual que cada um
tem diante de obras de arte.
Nessa amizade, acompanhei com admiração e atenção o trabalho de Elaine no
Museu Lasar Segall e, infelizmente, não estive tão próxima em sua trajetória na Fundação
Bienal, que circunda mais propriamente o objeto deste trabalho.
A minha surpresa inicial se desfez quando Elaine Fontana me disse que me convidou
porque queria que fossem ressaltados os aspectos políticos de seu trabalho. A esse convite
não poderia recusar.
Embora o trabalho de Elaine Fontana tenha como objeto as 24a e 33a edições da
Bienal de São Paulo, que dizem respeito à sua experiência de dez anos na Fundação
Bienal, ele remonta, explicitamente, à sua outra experiência no campo da educação de arte
(ou arte-educação) no Museu Lasar Segall, em São Paulo, instituição acolhedora a seus
visitantes, convidando a todos a visitarem-na várias vezes.
Elaine Fontana incorporou o espírito das atividades do Museu, com o engajamento
de que fala, quando recorre a bell hooks para indicar a fonte teórica da pedagogia utilizada
nas atividades de pesquisa-ação e também de monitoramento de visitantes aos museus e
exposições.
A opção por bell hooks e por Achille Mbembe em suas fontes teóricas já seria um
forte indício de que tipo de política seu trabalho envolve, mas talvez seja interessante da
alguns passos atrás.
O título deste livro já nos invoca duas perguntas: (i) de que corpo político Fontana
nos está falando? (ii) em qual instituição de arte? A segunda pergunta é respondida com o
objeto central da pesquisa: duas edições da Bienal de São Paulo que, embora compreenda
principalmente exposições de arte contemporânea, abrange também retrospectivas,
espaços museológicos e outros destaques históricos, conforme o propósito de cada edição.
Essa resposta, no entanto, se torna mais complexa, quando Elaine explora sua experiência
no Lasar Segall.
O corpo político de que fala Fontana é tanto o corpo político das instituições, com
seus propósitos culturais e políticos de atração e relação com os públicos, quanto o do
espectador, individual e coletivo. Individualmente, as exposições e os acervos têm seus
impactos sobre o público espectador, em sua subjetividade que experimenta a observação
de um conjunto de obras de arte e também naquela que vive um momento contemporâneo
ao da obra ou busca uma maior compreensão de um tempo histórico em uma sala de
museu.
Há também a subjetividade do artista, que se comunica com o seu próprio tempo e
com o tempo posterior à sua obra. Essa sobrevivência da arte é, ela própria, também política
e dá à arte uma possibilidade extraordinária e de ser o veículo de um processo libertador.
Ainda que o sujeito que vá a um museu não pretenda ser ele ou ela próprio um artista, a
comunicação estabelecida se dá por meio de algo que compartilha. E o público, entre si,
tem uma experiência, ainda que individual, compartilhada. A obra está na instituição de
arte para produzir convivências e experiências. Aquele que visita uma instituição de arte,
portanto, nunca está propriamente sozinho ou isolado. Coletivamente, cada edição de uma
Bienal e a existência de um museu marcam de forma indelével o espaço urbano, o entorno
e o público que os frequenta.
Para além dessa importância, que é o ponto de partida inescapável das instituições
de arte, qual o papel que o educador, tanto aquele que faz a curadoria, quanto aquele que
tenta levar acessibilidade daquilo que está sendo exposto ao público, cumpre?
O papel mais evidente, sem dúvida, é o de democratizar o acesso às obras de arte,
tornando-as não apenas mais inteligíveis, mas mais atraentes. O educador pode contentarse
em transmitir conhecimentos sobre o que está sendo mostrado, o que já não seria
pouco. Mas o que é sugerido neste livro é que o espectador seja considerado um sujeito
que a instituição deseja envolver no seu projeto.
Percorrendo o caminho do educador engajado, apontado e trilhado por bell hooks
e também por Fontana, o papel desse educador, mais do que o de qualquer outro, é o de
convidar o seu público não somente a observar as obras com uma autonomia atomizada,
mas também a viver a densidade coletiva que cada instituição de arte – no sentido amplo
adotado neste trabalho – e cada obra comportam.
Esse engajamento, de que fala bell hooks no primeiro ensaio de seu livro Ensinando a
transgredir: a educação como prática de liberdade, é uma educação progressiva e holística,
mais exigente que uma pedagogia crítica, pois ela dá ênfase ao bem-estar. Como alcançar
esse bem-estar, sem apagar a inquietação desejável que uma obra de arte desperta?
Fontana não chega a mencionar, mas ele transborda em todo o seu texto e está
presente na introdução do livro de hooks: esse engajamento é produzido por meio da busca
incessante do entusiasmo tanto daquele que educa, como de seu público. E, em relação
ao engajamento, eu acrescentaria o comprometimento de cada educador e cada instituição
com a formação de seu público para a liberdade a ser exercida de forma espontânea,
respeitosa e pulsante.
O desafio que tal trabalho enfrenta é por excelência político, característica que a
autora reivindica, reconhece e analisa. Trilhando o caminho apresentado neste trabalho,
as instituições de arte se formam e se estabelecem com algum propósito, em geral ele
próprio político. Estão analisados, neste estudo, os propósitos do Museu Lasar Segall e
da Fundação Bienal de São Paulo. Esse propósito tem de ser ajustado à medida que se
conhece o público que está disposto a aceitar o convite à reflexão e ao conhecimento que
cada instituição de arte faz. Para consolidar o público, cada instituição tem de conhecê-lo,
não para simplesmente atraí-lo, ou convencê-lo, mas para criar uma comunidade artística,
tal como a “comunidade pedagógica” de que fala hooks, em outro ensaio do mesmo livro.
Essa comunidade artística abraça ou não o projeto da instituição, mas se a instituição
estiver disposta a escutá-la, tirará proveito do diálogo. O conhecimento produzido por
tal diálogo, mais do que qualquer outro, é contingente, pois além de cada indivíduo se
transformar ao visitar uma instituição de arte, novas gerações aparecem reivindicando
outras formações. Cabe a cada instituição se “autoatualizar”, como indicado por Fontana,
mais uma vez inspirada em bell hooks.
Ao educador em arte, além de conduzir esse caminho das atualizações, é reservada
também a possibilidade de experiências com outros públicos que, na radicalidade da
experiência artística, os consideram como os próprios produtores de expressões por
veículos que poderiam ser artísticos. O relato da experiência com o grupo Ultra-Red, ápice
deste trabalho, sugere o quanto de escuta um educador preparado em instituições de arte
pode nos revelar a respeito das percepções de uma política de Estado ou de um aspecto da
realidade. A possibilidade de captar e registrar o impacto emocional de uma determinada
situação, mais uma vez em uma situação coletiva, dá ao mediador/educador uma capacidade
privilegiada de intervir e agir politicamente. Não por acaso, seu trabalho pode se traduzir
em uma pesquisa-ação. Esse lugar de pesquisador se dá na comunicação com outros não
apenas por meio de suas expressões separadas ou registradas momentaneamente, mas
de um agir conjunto propício para a instauração de uma liberdade coletiva contingencial,
ou seja, uma liberdade política.
Coletividade, convivência, escuta, expressão compartilhada são as chaves para
o existir político do mediador na experiência que convive com o público que por ele é
alcançado.
Maria Abreu
Professora do curso de Gestão Pública
para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES) da UFRJ
Abril de 2022.
O corpo político na instituição de arte: Estudos sobre a 24ª e a 33ª edições da Bienal de São Paulo
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DOI: 10.22533/at.ed.290221111
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ISBN: 978-65-258-0529-0
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Palavras-chave: Arte-educação; Bienal de São Paulo; curadoria; educação; mediação
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Ano: 2022
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Número de páginas: 124