O bioma caatinga e outros territórios frágeis do Nordeste: progressos e desafios
Publicado 27 de setembro de 2023.
Toda nova publicação do engenheiro agrônomo, economista e doutor em Economia José Otamar de Carvalho será sempre recebida com entusiasmo pelos acadêmicos, pesquisadores e formuladores de políticas públicas, pois poucos conhecem tão bem a problemática regional do país, em suas múltiplas dimensões (social, ecológica, política, demográfica, econômica, territorial e ambiental), quanto ele, especialmente se o assunto for o Nordeste brasileiro. Não se trata apenas de um intelectual de grande envergadura que domina o conhecimento teórico e histórico, o que fica evidente em seus escritos, como este novo livro O Bioma Caatinga e outros territórios frágeis do Nordeste: progressos e desafios, que tenho a honra de prefaciar.
Otamar é um cearense nascido em Senador Pompeu; portanto, desde a origem, se familiarizou com os segredos da “civilização do couro” de que nos fala Capistrano de Abreu e os mistérios que fazem do semiárido uma das mais atraentes (e contraditórias) áreas do país. Quando trata de sua região, o faz com conhecimento de causa de quem aprendeu nos primeiros passos da vida, anteriores, assim, à vivência acadêmica e à leitura d’Os Sertões, de Euclides da Cunha, seu livro de cabeceira, que “o sertanejo é antes de tudo um forte”, mas que seu bioma tem fragilidades (e potencialidades), as quais Otamar discute com propriedade nesta obra.
Sua origem cearense lhe possibilitou conhecer por dentro o Bioma Caatinga, que nos apresenta neste livro, pois, como ele mesmo destaca, “no Ceará encontra-se a síntese das condições ambientais e sociais na área das caatingas nordestinas, com povoamento de base pastoril, incitante do espírito de liberdade dos que tocavam as boiadas, em busca dos amplos espaços de vegetação aberta, construindo currais que foram núcleos das futuras fazendas e da maioria das vilas. Ali têm suas melhores expressões os padrões culturais da ‘civilização do couro’. O vaqueiro é um tipo solitário, habituado ao silêncio e aos amplos horizontes, um andejo, ferrenho defensor da vida livre”. Também no Ceará encontraremos a síntese dos problemas do Bioma Caatinga, tão bem retratada por escritores como Rachel de Queiroz e Rodolfo Teófilo: a natureza e o sentido do fenômeno das secas, e a escassez de água, que nos obriga, necessariamente, a pensar na especificidade do desenvolvimento socioeconômico requerido por um território com tais características e com forte ação antrópica, numa área densamente povoada, o que a coloca entre os semiáridos mais urbanizados do planeta.
Da terra natal para o mundo, durante décadas, na condição de servidor público ou consultor independente, o autor realizou pesquisas em vários países, quando, através de estudos comparativos, pôde se aprofundar no entendimento de sua região de origem e das políticas para ela direcionadas. Otamar me lembra seu coestaduano de Quixadá, município também localizado no Sertão Central, onde nasceu o escritor, poeta e jornalista Jáder de Carvalho, que afirma: “a cidade grande não me venceu (…). Eu gosto, gosto de verdade do meu sertão feio, ensolarado e esquecido”. Otamar, mesmo ganhando o mundo, fazendo pesquisas e estudos de casos sobre as mais variadas regiões do planeta, para aplicar o aprendizado em políticas públicas com vistas à intervenção nas regiões e sub-regiões de seu país, nunca desviou a atenção ou perdeu o interesse pelo estudo do Nordeste sertanejo. Sua produção bibliográfica atesta isso, com particular destaque para o livro A Economia Política do Nordeste – secas, irrigação e desenvolvimento, leitura obrigatória para entender a formação socioeconômica e histórica da região e as políticas públicas direcionadas para ela e hoje, com certeza, um clássico dos estudos regionais no país.
Não se pode dizer que o sertão está esquecido, como escrevera Jáder, especialmente após mais de um século e meio de estudos sobre o semiárido nordestino e após décadas de atuação do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas-DNOCS, do Banco do Nordeste-BNB e da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste-Sudene na região onde se encontra o Bioma Caatinga, objeto principal deste livro e único dos nossos biomas localizado exclusivamente em território brasileiro. Nenhuma região foi tão estudada como o Nordeste, que, desde a controversa Comissão Científica de Exploração (1859-1861), citada pelo autor em seu capítulo terceiro, de natureza histórica, acumula um conjunto de estudos, incentivados pelo poder público e por organizações não governamentais-ONGs. Estudos que não apenas serviram para conhecê-la melhor, como também permitiram agir em bases científicas sobre ela, ainda que os resultados sejam sempre passíveis de contestação. No geral, a Caatinga e o semiárido – detalhadamente tratados pelo autor – se modificaram, e já não formam, do ponto de vista natural e socioeconômico, o mesmo sertão que Jáder descreveu nos anos 1960, quando nos ensinou, poeticamente, que enquanto “o sol da praia bronzeia a pele; o do sertão queima corpo e alma”.
Apesar de seus problemas seculares, ligados às intempéries, já não é possível pensar a região apartada das transformações resultantes do planejamento que lhe ampliou a ação antrópica e inseriu esse espaço na dinâmica socioeconômica do país, inclusive criando políticas de proteção contra as secas e a fome. A modernidade, no entanto, trouxe em seu rastro problemas como o aumento das Áreas Susceptíveis à Desertificação, que são analisadas com destaque ao longo desta obra. Se existem problemas – não há como negá-los, especialmente quanto à desertificação e aos efeitos das alterações climáticas –, também há possibilidades para a promoção do desenvolvimento em bases sustentáveis que atrelem a vida econômica sertaneja às possibilidades que o Bioma Caatinga oferece, para a promoção de emprego e renda. Para tanto, políticas públicas que respeitem a diversidade ecológica do país e os limites de um bioma tão fragilizado como a Caatinga são fundamentais. Essa é uma lição que tiramos da leitura deste livro.
Nesta obra, o autor, sempre preocupado com o desenvolvimento em bases regionais, segue o mesmo procedimento encontrado em outras produções suas, nas quais convida quem o lê a acompanhá-lo didaticamente pelos conceitos trabalhados, sem abrir mão do rigor teórico e metodológico. É o que faz no capítulo segundo, quando nos apresenta, com devido rigor metodológico e preocupação didática, a base de dados integrada por variáveis e indicadores referentes às diversas regionalizações que são apresentadas ao longo da obra. Como nos lembra o autor, “as variáveis selecionadas compreendem aspectos físico-bióticos e socioeconômicos, que interessam, em particular, ao estudo do Bioma Caatinga”, mas não apenas, é bom que se diga.
A preocupação didática e o rigor metodológico se repetem nos capítulos seguintes, quando nos apresenta conceitualmente as diversas regionalizações e delimitações do Nordeste (ou dos Nordestes) e do Bioma Caatinga para fins de planejamento e ação, como faz no capítulo quatro. Impossível não nos remeter à ideia de Perroux de região de planejamento, ou seja, aquela que deriva de uma regionalização que se destina à intervenção definida por uma empresa, uma autoridade ou uma instituição qualquer. Assim, o autor parte do Nordeste do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE para apresentar as outras regionalizações, como o Nordeste do BNB; o Nordeste da Sudene; o Nordeste do Semiárido; o Bioma Caatinga; e as Áreas Susceptíveis à Desertificação. Como nos indica o próprio Otamar, “espaço produzido é um conceito utilizado por geógrafos e economistas, uma espécie de contraponto ao conceito de espaço natural. Ambos os conceitos têm se prestado aos estudos de delimitação das regiões, usualmente utilizados em atividades de planejamento regional”.
Seu foco é, portanto, o planejamento e a capacidade (e necessidade) de intervenção sobre a região objeto, a partir de condições naturais e sociais que conformam o bioma em questão. Por isso, após apresentar as carências institucionais que sempre colocam óbice a formulação e execução de políticas – objeto do capítulo cinco, no qual discute os conceitos de instituição e organização por ele trabalhados –, o autor aponta no capítulo sexto um conjunto de ações de instituições públicas e ONGs na Caatinga, bioma que ele definiu sob diferentes delimitações no capítulo quatro. Ele encerra o livro indicando no capítulo sete os desafios – institucionais, ambientais, econômicos e demográficos – para o desenvolvimento sustentável da Caatinga. Fica-nos a lição de que qualquer política pública direcionada ao Bioma deve ser feita de forma integrada, levando em conta e articulando os diversos Nordestes, especialmente aquelas três áreas que o livro tratou com maior destaque: Nordeste Semiárido, Bioma Caatinga e Áreas Susceptíveis à Desertificação.
Em um momento em que as discussões sobre o clima e o meio ambiente pautam as agendas das entidades governamentais e de ONGs que trabalham com questões ambientais em todo o planeta, o livro de Otamar de Carvalho chega em boa hora; afinal, observamos o aumento do desmatamento do Bioma da Caatinga, principalmente em sua porção oeste, pelo avanço do agronegócio de exportação, o que tem contribuído para a elevação da temperatura média da região e para sua desertificação. Nunca foi tão urgente a necessidade de políticas públicas em bases regionais e a adoção de outro modelo de desenvolvimento, sobretudo em áreas historicamente vulneráveis. Para tanto, a leitura de O Bioma Caatinga e outros territórios frágeis do Nordeste: progressos e desafios torna-se obrigatória.
Fernando Cézar de Macedo
Distrito de Barão Geraldo, Campinas (SP), 16 de maio de 2023.
[6]É esse o título de seu último livro. Ver: CARVALHO, Otamar de. Desenvolvimento em bases regionais – Experiências com Políticas Públicas. Campina Grande-PB, EDUEPB, 2021, 641 p.
O bioma caatinga e outros territórios frágeis do Nordeste: progressos e desafios
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DOI: 10.22533/at.ed.498232209
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ISBN: 978-65-258-1849-8
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Palavras-chave: 1. Caatinga. 2. Biomas - Brasil, Nordeste. I. Carvalho, Otamar de. II. Título.
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Ano: 2023
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Número de páginas: 140