Intolerância e vulnerabilidade: discutindo marcos na vitimização como desafios para a guerra na contemporaneidade
Publicado em 22 de maio de 2024.
A obra que o leitor tem em mãos aborda, sob um olhar interdisciplinar, questões como intolerância, vulnerabilidade e vitimização no âmbito de dois conflitos internos que tiveram impactos profundos na cultura e na política de nações tão distintas: a Guerra de Canudos no Brasil e a Guerra de Secessão nos Estados Unidos da América (EUA). Mas, afinal, o que une esses dois acontecimentos, no trato de questões juridicossociais, que deixaria o próprio Henri Dunant tão perplexo quanto aquelas atrocidades que ele vira em Solferino?
É essa busca pelo elo conceptual que une os dois subcontinentes americanos que Carlos Leite trata os dilemas inerentemente envoltos em qualquer conflito armado – interno ou internacional – em que, de um lado, está aquele ente leviatânico que detém o monopólio do uso legítimo da força física e, do outro, sua própria população civil em armas, exercendo, sob o cheiro de sangue e pólvora, seu soberano poder popular.
As discussões em torno da proteção à dignidade da pessoa humana são, portanto, o cerne desta obra, que, aliás, é decorrente da Tese de Doutorado em Sociologia e Direito por parte do autor. Para além do que está positivado como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro – inciso III do art. 1º, da Constituição Federal de 1988 –, a dignidade da pessoa humana é um construto social, de vertente internacionalista do Direito Internacional, construída a partir de casos chocantes contra a essência do que é ser humano. É nesse bojo que se inserem, por exemplo, as atrocidades cometidas em Auschwitz, Síria, Iraque, Afeganistão e, claro, Canudos e Andersonville.
Ao realizar uma relação diretamente proporcional entre aumento de “não reconhecimento do outro” com a vitimização em áreas conflagradas, o autor proporciona um exame aprofundado não apenas nas consequências dos conflitos em tela – julgamentos e mortes, por exemplo –, mas, principalmente, das suas causas. Aqui, vê-se claramente o chamado da obra para um diálogo com outras disciplinas sociais, em especial com antropologia, sociologia e história. É dessa maneira que o autor realiza uma conversa epistemológica entre Euclides da Cunha, Eric Hobsbawm, John Locke e Boaventura de Sousa Santos, por exemplo.
Sob esse prisma, a intolerância entra como variável interveniente que ajuda a explicar como vítimas de conflitos armados sofrem ainda mais por causa de determinadas idiossincrasias, como cor da pele ou etnia. Foi isso que ocorreu em Auschwitz, mas também em Canudos e Andersonville, de acordo com as evidências e estudos levantados nesta obra. Assim, o grito que ecoa a partir das páginas deste livro vai na direção da proteção das vítimas de um conflito armado, ou seja, a dignidade da pessoa humana não se esgota com o fim de um conflito. É aqui que entra o papel de outros atores externos, como as organizações internacionais, em especial as jurídicas, responsáveis por averiguar as condições das vítimas e punir possíveis transgressões de guerra.
O autor teve a sensibilidade de perceber como a manifestação da ideologia cultural encontra ainda mais espaço durante a vitimização de povos em que a classe dominante não se reconhece. Portanto, a ideologia exerce um papel de variável dependente para explicar ainda mais as atrocidades que ocorreram no Brasil e nos EUA.
Logo, embarcar nesse processo de entendimento sobre o não reconhecimento do outro nos dois conflitos aqui analisados é lançar luz também sobre as raízes do mal que acometeu combatentes e prisioneiros de guerra em Canudos e Andersonville. Todavia, isso é feito sob um olhar antropológico e sociológico aguçado, uma vez que o etnocentrismo das forças – infraestruturais e superestruturais – hegemônicas envoltas nos conflitos e revelado pelos achados na pesquisa potencializaram ainda mais a vitimização dos que já sofriam os horrores dos conflitos.
É nessa panaceia de discussões sobre a proteção das vítimas em situação de conflitos deflagrados que surgem diretrizes, preceitos e normas do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA) ou, simplesmente, Direito Internacional Humanitário. Aliás, o próprio autor leciona disciplina e é líder de grupo de pesquisa que lida diretamente com essa temática no Programa de Pós-Graduação em Ciências Aeroespacias (PPGCA) da Universidade da Força Aérea (UNIFA).
Mais que isso, ao lançar um olhar humanitário e embasado no direito internacional público e nas raízes sociaisdos dois conflitos marginalizados por abordagens contemporâneas sobre vitimização e humanitarismo – diga-se de passagem, há vasto material histórico, literário e jurídico sobre os cases aqui tratados, mas poucos com a abordagem humanitarista e interdisciplinar proposta por Carlos Leite –, a obra ajuda a explicar as origens das atrocidades acometidas nesses dois conflitos, sem cair em erros anacrônicos.
Isso tudo torna a obra ainda mais indispensável para estudiosos e praticantes do DICA e das Ciências Sociais, já que a expertise do autor aliada ao conhecimento nos dois estudos de caso aqui aprofundados engendram uma práxis humanitária que foge das análises corriqueiras e mainstream dos grandes conflitos ou guerras e acaba por abarcar dois acontecimentos pouco explorados via essa perspectiva inovadora de análise.
Professor Doutor Gills Vilar Lopes – Docente Permanente do PPGCA/UNIFA
Professor Doutor Eduardo Sol Oliveira da Silva – Coordenador do PPGCA/UNIFA
Intolerância e vulnerabilidade: discutindo marcos na vitimização como desafios para a guerra na contemporaneidade
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DOI: https://doi.org/10.22533/at.ed.983242003
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ISBN: 978-65-258-2298-3
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Palavras-chave: 1. Conflito social. 2. Direitos humanos. 3. Vítimas. 4. Intolerância. 5. Vulnerabilidade. 6. Desigualdade social. I. Silva, Carlos Alberto Leite da. II. Título.
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Ano: 2024
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Número de páginas: 143