Publicado em 10 de agosto de 2023.

Ética. Respeito. Bem-estar. Humanidade. Perícia. Progresso. Se eu
tivesse que escolher algumas palavras-chave para este livro, com certeza estas
estariam entre elas e, creio eu, em conjunto representam simbolicamente o
conteúdo que é nele apresentado.
Uma boa parte da evolução do conhecimento ao longo dos séculos se
deve à experimentação com animais, utilizados como modelos para estudos
de anatomia, fisiologia e patologia, entre outras disciplinas. Esse próprio
conhecimento, intrinsecamente, fez-nos evoluir de uma premissa que tais
animais seriam, por exemplo, incapazes de sentir dor, para uma percepção mais
humana de que estes, assim como nós, possuem senciência, ou seja, através
dos sentidos, sentem, entendem e percebem o que está ao seu redor e as
intervenções que lhes são impostas.
Esta questão vem, já há algum tempo, provocando intenso debate no
meio acadêmico e na sociedade, dada a alta probabilidade de produção de
danos significativos nos animais sob experimentação. Nesse contexto, em 1954,
a Federação das Universidades para o Bem-Estar Animal dos Estados Unidos
decidiu patrocinar uma pesquisa sistemática sobre o progresso da técnica humana
em laboratório, a qual culminou, anos mais tarde (1959), na publicação do livro:
The Principles of Human Experimental Technique, pelos cientistas Willian M. S
Russel e Rex L. Burch. Nessa obra, os autores introduzem o Princípio dos 3Rs,
relativos à substituição (Replacement), à redução (Reduction) e ao refinamento
(Refinement) na experimentação animal, bem atuais e em desenvolvimento nos
dias de hoje.
Muito tem sido discutido sobre a adoção de alternativas de substituição
desses animais por outros modelos, como ensaios in vitro com culturas
de células e modelos matemáticos. Por outro lado, a experimentação com
animais em pesquisas biomédicas ainda hoje é inevitável devido à escassez
de modelos alternativos que possam, por exemplo, garantir com segurança o
desenvolvimento e a utilização de bioprodutos com aplicação médica humana e
veterinária, justificando-se, portanto, ao projetar expectativa de benefício para a
sociedade ou para os animais. Assim, vem sendo buscada a redução do número
de animais utilizados em cada experimento, tanto a partir de uso de outras fontes
de material biológico, como o depositado em coleções biológicas, biobancos
e biorrepositórios, quanto o emprego de métodos como exames radiológicos,
telemetria não-invasiva e inteligência artificial, que aliam cuidados com o bemestar
animal e a obtenção de informações.
Em um contexto científico mundial no qual a reprodutibilidade das
pesquisas científicas está sob o microscópio, devemos atentar que a excelência
das pesquisas que envolvem experimentação animal está diretamente
relacionada ao uso humanitário de animais de laboratório, alinhado ao princípio
dos 3Rs, principalmente o Refinamento, voltado ao bem-estar animal. Nesse
âmbito, uma ação fundamental é a antecipação da remoção de um animal
envolvido em procedimento de experimentação, com vistas à prevenção,
redução ou resolução de quadro de dor, desconforto ou distresse que possa
estar sendo por ele apresentado, o que é denominado de ponto final humanitário
(humane endpoint).
Escrito por profissionais com larga experiência na experimentação animal
em diferentes campos do conhecimento e de diversas instituições brasileiras,
este livro coloca o bem-estar animal e a finalização humanitária como focos
principais, mas vai muito além de reunir orientações de atuação prática, na
medida em que realiza uma contextualização ampla de vários elementos
que o orbitam. Nesse sentido, os diferentes colaboradores da obra dissertam
inicialmente sobre aspectos gerais da Experimentação Animal e sobre a Cultura
do Cuidado, passam pelo acompanhamento clínico dos animais em diversas
situações experimentais (infecções experimentalmente induzidas, câncer,
radiação ionizante, alterações ósseas como osteoporose e tumores ósseos,
procedimentos cirúrgicos e produção de anticorpos policlonais), discutem
questões referentes à padronização de procedimentos e o controle de qualidade
e segurança na experimentação, e chegam até os procedimentos de manejo de
dor e eutanásia humanitária.
Além disso, são aqui discutidas questões relacionadas à legislação
voltada à experimentação com animais, com menção específica à Lei Arouca
(Lei nº 11.794/ 2008), que criou o CONCEA (Conselho Nacional de Controle de
Experimentação Animal) e determinou a criação das CEUAs (Comissões de Ética
no Uso de Animais), e que está completando 15 anos. Aliás, a legislação deve
proteger tanto os animais utilizados como biomodelos quanto os profissionais
que atuam na Ciência em Animais de Laboratório, profissionais estes muitas
vezes submetidos a intensa carga de estresse psíquico e exaustão emocional,
muitas vezes gerando a chamada “fadiga por compaixão”.
Ainda dentro dos arcabouços norteador e normativo, o livro menciona
também, ao longo de seus diferentes capítulos, diversos guidelines adotados por
diferentes países, como Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e Nova Zelândia,
alguns deles, inclusive, com orientações específicas para algumas áreas de
experimentação animal, como a oncologia.
A Ética, sim, aquela com letra maiúscula e com mais de 2.500 anos,
enquanto convenção social que protege valores, como aquele baseado na
consideração com o outro (não necessariamente um outro ser humano), permeia
todo o texto e convida a reflexões importantes.
Trata-se de uma obra que pode ser usufruída tanto na forma de uma
leitura sequencial, cuidadosa e sistematizada sobre o tema do bem-estar animal
e o ponto final humanitário, quanto de um guia de referência e consulta para todos
aqueles que trabalham com experimentação animal - sejam pesquisadores de
área biomédica que utilizam biomodelos em suas investigações ou profissionais
que trabalham tanto com criação quanto com experimentação animal. Além de
possuir nicho onde ainda há poucas publicações sistematizadas sobre o tema,
em especial no Brasil, fornece conteúdo técnico importantíssimo à atuação na
área e instiga reflexões que vão para muito além dela e que são motores de
aperfeiçoamento e progresso da pesquisa biomédica.
Marcelo Pelajo Machado
Pesquisador em Saúde Pública
Laboratório de Medicina Experimental e Saúde, Instituto Oswaldo Cruz/
Fiocruz, Rio de Janeiro/ RJ