Entre críticas e soluções: políticas públicas e as violências contra mulheres
A mulher é o “segundo sexo” na sociedade patriarcal em que vivemos, como ensinou Simone de Beauvoir. Tornar-se mulher, nessa sociedade, significa aprender a viver a partir de uma organização política, econômica, cultural, em que os homens têm poder, e, portanto, definem o conteúdo das normas sociais. Assim, as mulheres aprendem, desde a mais tenra infância como se comportar, seja em casa, ao reproduzir o trabalho doméstico, seja na rua e em outros espaços públicos, onde devem sentar direito, vestirem-se adequadamente, falarem baixo, terem vergonha.
Nessa sociedade, os desejos e expectativas masculinas definiram os papéis de gênero: à mulher coube o trabalho reprodutivo, de cuidado, não remunerado, disfarçado de atos de amor e exercido dentro do espaço privado (o lar). À mulher, quando coube remuneração, foi em trabalhos considerados inferiores, subalternizados, como a prostituição (“a mais antiga profissão”), a cozinha, a lavanderia etc. O acesso à rua, ao espaço público onde os homens transitam livremente, muitas vezes foi proibido ou controlado para a mulher, porque seu corpo, objetificado pelos homens, deveria permanecer longe dos olhares sociais. E quando esse corpo feminino precisou estar na rua – por questões de classe e raça – ele foi observado, analisado, perseguido, violentado, mutilado. Dessa maneira, seja no espaço privado, seja no espaço público, a mulher teve suas possibilidades de existência definidas pelo poder patriarcal.
Em que pese essa realidade vir mudando através de muita luta e com o sacrifício de muitas vidas femininas, a violência direcionada à mulher continua ocorrendo, em espaços públicos e privados. Mas agora, finalmente, as mulheres conquistaram espaços de poder, constroem e reivindicam políticas públicas, tanto para educar a sociedade para uma outra cultura, menos machista (quiçá feminista), quanto para punir agressores e acolher as vítimas.
Nesse sentido, é preciso assinalar que o próprio espaço social é planejado e produzido a partir de diversas hierarquias, a de gênero entre elas. Os locais de trabalho e lazer, os sistemas viários, os itinerários das mobilidades, o calçamento e as ruas, tudo tem como destinatário um homem branco, heterossexual e de classe média ou rico. Essa assimetria precisa ser vista como uma questão de Estado, e repercutir em sua estrutura, planejamento e organização.
Pensar em quais políticas públicas, equipamentos sociais e urbanos podem facilitar a vida da mulher no seu cotidiano é tarefa fundamental de planejadores, gestores e pesquisadores. É preciso direcionar o olhar para a trajetória da mulher e de seu corpo no espaço social: a mobilidade e a permanência da mulher pela cidade, em sua trajetória cotidiana, em seus afazeres, em suas necessidades, no lazer e nos trabalhos. É preciso fazer essa análise unindo raça, classe e território, pois a mulher negra historicamente teve um papel social diferente do da mulher branca, assim como a mulher pobre transita e cumpre funções diferentes da mulher rica.
Essas diferenças podem ser vistas no espaço social: a mulher branca e rica tende a morar em lugares melhores, com mais infraestrutura, tendo acesso à informação e à educação; enquanto as negras e pobres estão nas periferias, lutando por uma sobrevivência que, muitas vezes, passa por ter acesso a direitos básicos. Ambas podem sofrer violências, mas elas serão vivenciadas de forma distintas e as suas capacidades de resistência e acolhimento também o serão.
Portanto, pensar gênero e violência de gênero como questão social, implícita do capitalismo em seus espaços de reprodução, é fundamental para estruturar políticas públicas, sejam de educação, afirmativas ou que trabalhem na “retaguarda”, como é o caso do presente livro.
Os artigos aqui trazidos, todos frutos da orientação do professor Vinicius Baptista no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas (PPGDT), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, trazem números e análises acerca das políticas – ou ausência delas – que permeiam a violência contra mulheres no espaço do Rio de Janeiro, seja a capital, sejam suas periferias. O livro se soma a outros, dentro da grande área do Planejamento Urbano e Regional e Demografia (PLURD), para denunciar a necessidade de políticas públicas efetivas que identifiquem e responsabilizem os sujeitos da violência, acolham suas vítimas e deem visibilidade à questão. Essas análises não são abstraídas do espaço social em que a violência ocorre, trazendo o território como eixo fundamental, demonstrando diferenças e singularidades, reforçando a missão do PPGDT em promover a construção de conhecimentos e a formação de recursos humanos que ajudem na reflexão acerca de políticas públicas consistentes com o desenvolvimento territorial sustentável e a justiça socioespacial, sendo certo que a igualdade de gênero se coloca nesta esfera. Imperioso, então, pensar a cidade e o lar como espaços que, também, devem permitir às mulheres exercerem suas autonomias, subjetividades e livres de riscos às suas integridades. Acredito que este livro contribui nessa construção. Boa leitura!
Tatiana Cotta Gonçalves Pereira¹
[1] Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora do Departamento de Ciências Jurídicas e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas (PPGDT), ambos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Entre críticas e soluções: políticas públicas e as violências contra mulheres
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DOI: https://doi.org/10.22533/at.ed.904252910
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ISBN: 978-65-258-3690-4
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Palavras-chave: 1. Violência contra a mulher. 2. Política pública. I. Rodrigues, Evelyn Pereira. II. Araújo, Isabelle Sampaio de. III. Silva, Samara Helena Quintas da. IV. Título.
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Ano: 2025
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Número de páginas: 175
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