Da vida comum ao protagonismo histórico: a construção da memória de Madre Leônia Milito em Londrina (1953-1980)
Publicado em 05 de julho de 2023.
A devoção a figuras consideradas santas é um fenômeno que atravessa
diferentes contextos históricos. Todavia, as manifestações da santidade – suas
personagens, formas, funções e até mesmo as matrizes que teriam permitido sua
emergência – transformam-se ao longo do tempo (GAJANO, 2002), tornandoas
objetos privilegiados da História. Nesse sentido, como afirma o historiador
francês Marc Bloch (1997), é mais importante compreender as ressignificações
de algo no decorrer das durações do que constatar suas permanências. O
livro de Thiago Machado Garcia é uma contribuição fundamental na produção
acadêmica, pois aborda o processo de santificação da madre italiana Leônia
Milito (1910-1980), que desenvolveu atividades religiosas na cidade de Londrina,
localizada no Norte do Paraná, sobretudo ao longo da segunda metade do século
XX.
Munido de rigor historiográfico, teórico, metodológico e heurístico, além de
uma sensibilidade que lhe permite ler as pistas com astúcia, Garcia sugere como
esse processo de santidade, que ainda não foi concluído em termos eclesiásticos,
foi construído ao longo do tempo. A pesquisa foi originalmente produzida junto
ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual
de Londrina, cuja dissertação de mestrado agora se transforma em livro. O
historiador analisa o fenômeno considerando o contexto histórico londrinense
quando da chegada de Madre Leônia à cidade, sua atuação e, principalmente,
sua morte e as implicações que esse fato apresentou para a arquitetura da
devoção.
A morte de Madre Leônia insere-se num modelo de santidade cristão,
ele próprio herdeiro da Antiguidade e da Idade Média, mas que apresentou
importantes mudanças ao longo do tempo. Como Garcia ressalta, em 1980,
Milito faleceu num acidente de trânsito num Fusca – o veículo é importante
considerando suas ressignificações a posteriori – a caminho de Maringá, cidade
paranaense situada a cerca de cem quilômetros de Londrina, quando visitou o
arcebispo Jaime Luiz Coelho. Posteriormente, no local do acidente, foi construída
uma pequena capela com uma imagem de Madre Leônia com os braços abertos,
tendo ao fundo uma estrada. Além disso, também no post mortem, foi criada a
Casa da Memória Madre Leônia Milito, que integra a Paróquia São Vicente de
Paulo, situada em avenida com o mesmo nome da religiosa. Na casa de memória,
há exposição dos objetos ligados à madre, incluindo aqueles relacionados à
sua morte, tais como o banco do fusca em que faleceu e a própria vestimenta
ensanguentada. Por isso, o carro, ou pelo menos parte dele, é significativo:
de veículo originalmente inerente ao mundo profano, converteu-se em objeto
sagrado ligado materialmente a um poder de ordem transcendente.
Há dois componentes que remontam a santidade de Madre Leônia ao
sugerido modelo antigo e medieval. Em primeiro lugar, é possível sublinhar os
próprios objetos que foram convertidos em relíquias, saindo do mundo profano
para adentrar a esfera sagrada. Na história da crença, artefatos como as vestes
de Milito e o banco do fusca teriam sido investidos de uma aura sobrenatural,
pois encontravam-se em contato direto com a personagem, lembrando que o
corpo desempenha papel importante na construção das santidades (GAJANO,
2002). Em segundo, o martírio é um componente fundamental na arquitetura
desses sujeitos muito especiais, na medida em que, por intermédio do sofrimento,
mesmo indivíduos comuns poderiam elevar-se à condição transcendente. Isso
especialmente no caso do martírio em nome da fé, cujas matrizes remontam a
figuras como João Batista e, principalmente, Cristo (ANDRADE, 2015).
Não obstante as matrizes antigas e medievais que envolvem o fenômeno,
não se pode esquecer que se trata de uma santidade contemporânea. Como
Garcia chama a atenção, a construção da devoção acontece numa cidade em
que as representações da modernidade foram e, em certa medida, continuam
sendo importantes. Tendo em vista a expressiva produção cafeeira entre as
décadas de 1940 e 1970 – encerrando-se com a Geada Negra, calamidade
“vinda do céu” –, Londrina foi considerada o Eldorado e a capital mundial do café
(ARIAS NETO, 2008). Em meio às riquezas, bem como às suas sombras (ADUM,
1991), circularam representações como modernidade, progresso, civilização e
racionalidade. Mesmo assim, nesse cenário, é significativo perceber como a
religião desempenhou papel importante na criação desse ideário, destacando-se
a ação da Igreja Católica e de figuras como Madre Leônia. As representações
religiosas constituem fios dessa malha complexa que compõem a tessitura
discursiva ligada ao Norte do Paraná.
Corolário da questão anterior, o livro de Garcia desempenha papel
importante ao contribuir para com a produção acadêmica sobre o fenômeno
religioso em Londrina e região. O objeto ainda é lacunar, excetuando pesquisas
realizadas por historiadores como Wander de Lara Proença (2009) e Marco
Antônio Neves Soares (2012). Malgrado a historiografia sobre a região tenha
crescido nas últimas décadas – destacando-se as investigações de José Miguel
Arias Neto (2008), Sonia Maria Sperandio Lopes Adum (1991), Nelson Dacio
Tomazi (1997), entre outras – as religiões e as religiosidades ainda permanecem
pontuais nesse estado da arte. Mesmo o Catolicismo é relativamente pouco
pesquisado tendo em vista a espacialidade e, portanto, Garcia oferece caminhos
fundamentais para compreendê-lo, considerando a ação de personagens e
grupos missionários italianos a partir da segunda metade do século XX. Isso
apresenta uma clivagem importante, uma vez que, no processo de recolonização
da região que viria a tornar-se Londrina na passagem dos anos 1920 para 1930,
o Catolicismo era marcado pela atuação de personagens e instituições alemãs,
sendo possível indicar o Colégio Mãe de Deus, fundado em 1936 e ligado ao
Instituto Secular das Irmãs Maria de Schoenstatt1.
Inserida nesse campo em formação, a pesquisa de Garcia constitui marco
importante a respeito de um fenômeno em aberto e cujos desdobramentos são
ainda desconhecidos, na medida em que o processo de santificação de Madre
Leônia não foi finalizado. Além disso, seria possível pensar essa santidade
inacabada em relação a outras santidades existentes na região e que não
passam pelo crivo da Igreja Católica. Dentre elas, pode-se ressaltar a crença
nos santos de cemitério, “santos oficiosos” (ANDRADE, 2010, p. 133) cuja
devoção é construída pelos grupos sociais e que independem das instituições.
No Cemitério São Pedro, hoje situado no centro de Londrina – mas que, nos
anos 1930, encontrava-se nas margens da cidade –, há a crença nos poderes
miraculosos de três sepultados: o Menino Osvaldo, que teria morrido criança e,
segundo uma das versões dos devotos, teria sido atropelado diante da Catedral
no dia de sua primeira comunhão (LEÃO, 2000); a Bela Adormecida, adolescente
que teria dormido durante cinco anos na década de 1950 e, logo depois, falecido
(DOENÇA, 1999); e, por fim, o Capa Preta, que teria sido o primeiro sepultado
em Londrina (MASCHIO, 2003)2. São três formas diferentes de santidade que
compõem a complexa teia da religiosidade londrinense.
O livro de Garcia é importante para acadêmicos envolvidos com a
pesquisa sobre a história regional e, também, a respeito da história das religiões
e religiosidades em Londrina. Mas, ao mesmo tempo, com linguagem fluida e
cativante, o autor consegue transcender os muros da academia ao oferecer
ao leitor, de forma mais ampla, uma obra fascinante em torno das diferentes
camadas que compõem a história da cidade.
Richard Gonçalves André
Londrina, verão de 2023.
1 Com o intuito de mapear a produção acadêmica a respeito das religiões e religiosidades em Londrina e
região, bem como de produzir novas investigações nesse sentido, foi criado o projeto de pesquisa intitulado
O fenômeno religioso em Londrina: história e historiografia (1930-1950), coordenado por Wander de
Lara Proença e Richard Gonçalves André junto à Universidade Estadual de Londrina.
2 Atualmente, os três santos de cemitério são pesquisados por Gregório Bernardino Matoso no curso de
História da Universidade Estadual de Londrina.
Da vida comum ao protagonismo histórico: a construção da memória de Madre Leônia Milito em Londrina (1953-1980)
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DOI: 10.22533/at.ed.995230507
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ISBN: 978-65-258-1499-5
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Palavras-chave: 1. Biografia. I. Garcia, Thiago Machado. II. Título.
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Ano: 2023
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Número de páginas: 139