Condicionantes internos e externos da involução da produção de alho (Allium sativum L.) na microrregião de Picos (PI)
Publicado em 13 de junho de 2022.
Mulher, esposa, mãe de um filho especial e docente de economia rural e empreendedorismo nos cursos de Medicina Veterinária e Agronomia, da Universidade Federal do Piauí, a professora Karla Brito dos Santos sempre construiu a sua trajetória, como pessoa, entre o seu lar, suas aulas e pesquisas. Emponderada e munida da centelha divina, permitiu-se viver plena, indissolúvel e resoluta tanto na primazia quanto nas instigantes arbitrariedades e desafios comuns a esses múltiplos espaços, mas igualmente comuns a ela, na construção de seu cotidiano e de sua trajetória.
O novo, parece, nunca lhe ter servido de embargue para seguir em frente. Pelo contrário, ela o recruta e o atrai para si mesma, aquietando-o em seu lugar, em seu mundo, ou cria um, se a situação assim exige. Nenhum desses espaços se ressente à sua presença marcante, ao longo de todos esses anos. Nunca renunciou a nenhum deles. Seu engajamento, rico do compromisso afetivo-científico, abriu-lhe recentemente, mais uma conquista gloriosa, expressa em sua mais recente obra prima - Condicionantes Internos e Externos da Involução da Produção de Alho (Allium sativum L.) na Microrregião de Picos (PI).
A presente obra é fruto de seu último trabalho de pesquisa de campo, cujo título, destaco-o, é um dos mais felizes entre os já lidos por mim. Um bom trabalho já começa com um bom título. Sem ambiguidade, sem abstração, sem pegadinhas. Limpo e assertivo, nele, a preocupação da autora revela-se com clareza: estudar os condicionantes internos e externos da involução da planta, numa das regiões expressivas no cultivo (Bocaína e Santo Antonio de Lisboa) e no comercio (Francisco Santos) da planta, no Piauí.
A obra consiste, essencialmente, em demonstrar as causas da extinção do cultivo do alho nesses municípios, que até a década de 1990, destacavam-se ora na produção da planta, ora em sua comercialização, inserido na teia diária de dezenas de famílias. O que terá ocorrido nessa região produtora para que a planta deixasse de ser cultivada? Terá sido em função de perdas de safras, ocasionadas por sucessivas secas que diminuíram a renda e o patrimônio das famílias? Ou terá a planta deixada de ser cultivada em função da ausência do estado, como gestor e promotor de políticas públicas, como assistência técnica e creditícia? Ou ainda: terá sido o seu cultivo abandonado por problemas de mercado ou mesmo por problemas ambientais? Essas são as questões centrais que o presente livro busca responder, ao longo de seus capítulos, conforme o leitor verá.
Karla Brito, nesse livro, faz uma incursão não apenas na forma de produção do alho pelas comunidades; a autora recupera discursos de homens e de mulheres que tiveram oportunidade de ver seus pais envolvidos no trabalho entorno do alho, cuja planta se destacava como uma das principais atividades agrícolas, por meios da qual garantiam provisão familiar, mesmo levando em consideração as dificuldades inerentes à produção da planta, que se dava pela sua dependência exclusiva das estações chuvosas, às beiras dos rios.
Conforme o leitor verá, a autora descreve o início da morte do alho, que se dá pela ruptura de uma tradição, que se acentua, principalmente, quando os membros mais jovens da família preferem sair da localidade e ganhar a vida fora dali, pondo em xeque a sucessão do trabalho familiar em torno de atividades ligadas ao campo. A morte do alho enluta a fé no trabalho agrícola; esmaece a cor dos sonhos, empurrando-os para a cova. Não para a cova que gera fruto, mas a que enterra uma tradição, cuja prática é realizada por um significava parcela que compõe à agricultura brasileira: a agricultura familiar, tão incompetentemente tratada pelas pastas do governo federal.
Ler esse livro é refletir sobre o nível de desigualdade existente entorno do comercio do alho no Brasil, especialmente, no Piauí, a partir da abertura da economia brasileira, em 1980. A partir dos dados da AliceWeb, da Secretaria de Comércio Exterior (SECEX) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) e Produção Agrícola Municipal (PAM), a autora nos revela em números o tamanho dessa desigualdade, e de mais uma porção do processo pelo qual se deu a extinção do cultivo do alho, ao longo de uma série histórica brasileira, não apenas no Piauí, mas em todo o Nordeste.
A autora assegura-nos que o desmonte do alho alcançou sua deterioração sob às vistas grossas do governo, “pela indisponibilidade de assistência técnica e a descontinuidade no processo de aprendizagem, com base no conhecimento passado de pai para filho, somando-se àqueles fatores relacionados às alterações do rio, volume de água e fertilidade, e aos problemas fitossanitários, contribuindo para a redução da produção, e embora tenha ocorrido aumento da produtividade do alho no Piauí no período de 1995 a 2011, este ficou muito aquém do ocorrido no estado da Bahia e na região Nordeste”. Toda a cultura entono do alho sofreu asfixia letal, ao longo dos anos. Só os escombros em forma de lembranças foram deixados para àquelas comunidades. O alho, para essas comunidades, já não cheira mais. Dele, só se conta história, história de um fracasso.
Embora houvesse possibilidade de o alho ser resgatado por homens e mulheres, ele passaria a ser esmagado pela crueldade das regras econômicas, inibindo qualquer perspectiva por parte desse segmento na retomada do negócio do alho. Aqui, não é mais o alho que morre, mas a motivação de um segmento inteiro. O algoz maior dessa exclusão é a competitividade desenfreada, enxergada não apenas por aqueles inseridos na produção, mas também pelos próprios consumidores. Na feira, os olhos dos consumidores são sequestrados para os alhos maiores e mais bonitos, os estrangeiros, que, inclusive, são mais baratos do que os produtos nacionais. A autora compreende que essa realidade se baseia na submissão da economia à política, cabendo ao governo o compromisso de frear e regular o mercado, protegendo àqueles em situação desvantajosa.
Ler a obra da professora Karla Brito dos Santos é muito mais do que tomar conhecimento, portanto, da importância da cultura do alho na Microrregião de Picos. A obra parte dessa porção territorial, ao mesmo tempo em que nos incita a pensar fora dela. A obra nos leva a acessar dados, até então impensáveis, sobre o processo de produção ao longo da cadeia do alho e a descobrir, em leituras paralelas, de que o Brasil se situa no 15º lugar na lista de países do mundo que cultiva essa cultura. A importância da planta, portanto, é mais que brasileira, é planetária. A obra já nasce internacional.
Em razão desses dados, o leitor pode questionar: como o cultivo de uma planta de importância mundial, cujo bulbo, composto por folhas escamiformes, que, além de ser comestível e usado tanto como tempero quanto para fins medicinais não tem chamado a atenção por parte do governo brasileiro, especialmente, o do Piauí? Com a leitura desse livro, o leitor se deparará com elementos teóricos e empíricos capazes de fazê-lo entender que um dos grandes méritos da obra em apreço consiste em atestar cientificamente o óbito da cultura do alho e de toda a dinamicidade econômica, social e cultural ligadas a ela. Cada um dos três capítulos revela-nos cuidadosamente um passo-a-passo de como se deu a extinção do alho no Piauí.
Na busca por elementos que apontassem a involução do alho em sua área de estudo, a autora descobre que a construção da barragem de Bocaina, no município de Bocaina (PI), contribuiu, sim, para a “decadência da agricultura desenvolvida em leito de rio, inviabilizando a produção de alho, tomate, cebola, pimentão, batata doce, e outras hortaliças, além de milho e feijão verde”. Esses “monstros aquíferos” (barragens) quando bem geridos ressuscitam cidades inteiras. Contudo, quando em seu processo falta o básico - Relatório de Impactos Ambientais (RIMA), os impactos negativos inevitáveis. Houve, portanto, negligência por parte dos órgãos de controle ambiental e esse soma-se a mais um dos fatores que contribuiu para a extinção do alho na área em estudo.
A obra, como o leitor verá, é tanto um tempero, que tonifica à leitura numa delícia de gênero textual a ser provada - por meios de dados fecundos -como é também ciência, fruto de um engenhoso empreendimento científico, realizado entre mulheres e homens, que tiveram suas vidas misturas ao alho. Sim, o tempero da obra tem seu ponto forte no alho, mas a capacidade dissertativa da autora nos provoca o olfato com a introdução de outros ingredientes, costumeiramente esquecidos e silenciados das cenas do cotidiano acadêmico, principalmente quando a temática é o alho. Essa é a determinação da obra: revelar esses ingredientes que levaram o alho a perder seu cheiro – sua involução. A competitividade, o comercio desleal, a ausência do governo e a construção da barragem de Bocaina são apenas alguns desses ingredientes. O leitor descobrirá muitos outros.
Termino essa apresentação saudando de forma pertinente a autora por tão valiosa obra, por seu ineditismo, pioneirismo e qualidade. Espero que todos os leitores desfrutem, como eu, dessa especial leitura que tem sabor de alho com ciência. Desejo a todos uma boa leitura-degustativa.
Campina Grande, abril de 2022
Prof. Dr. Eriosvaldo Lima Barbosa
Condicionantes internos e externos da involução da produção de alho (Allium sativum L.) na microrregião de Picos (PI)
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DOI: 10.22533/at.ed.834221306
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ISBN: 978-65-258-0183-4
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Palavras-chave: 1. Alho - Produção - Microrregião de Picos/PI. 2. Comércio mundial. 3. Conhecimento. 4. Tecnologia. I. Santos, Karla Brito dos. II. Título.
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Ano: 2022