Ebook - Bioética e justiça restaurativaAtena Editora

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1. Bioética. 2. Direitos fundamentais. 3. Direitos humanos. I. Albuquerque, Alin...

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capa do ebook Bioética e justiça restaurativa

Bioética e justiça restaurativa

Publicado em 13 de novembro de 2021.

Diziam os antigos que o ser humano só estaria com sua tarefa terrena plenamente cumprida quando tivesse alcançado três objetivos: plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. Nesta altura do século 21, pela facilidade de acesso à tecnologia e a toda e qualquer informação, o cumprimento desse chavão ficou mais acessível, especialmente a escrita e publicação de um livro. O papel, que recebe a escrita, e a internet, que a acolhe - transportando sabedoria e ignorância com a mesma neutralidade - estão acessíveis a sábios e a ignorantes. Esta reflexão inicial tem o objetivo de recordar aos leitores que ao lado de publicações que geram benefícios reais e diretos às pessoas e comunidades, é crescente a quantidade de lixo literário disponível no mundo contemporâneo, seja impresso ou digital.

Se por um lado, escrever e publicar um livro se tornou tarefa mais acessível, por outro, é tarefa cada dia mais desafiante produzir conhecimento original e de qualidade com o propósito cidadão de comparti-lo com a humanidade em benefício de melhor convívio e desenvolvimento humano no planeta.

A professora Aline Albuquerque, que organizou e comanda a presente publicação, tem se notabilizado - muito especialmente no campo de interface entre a bioética, o direito e os direitos humanos - em proporcionar aos pesquisadores e estudiosos interessados, reflexões acadêmicas de elevada qualidade em uma seara que, pelo menos no Brasil, carece do devido aprofundamento. De modo geral, com exceções pontuais, o nível da produção acadêmica no campo do chamado “biodireito” tem deixado a desejar já a partir de uma distorção de origem: na sua gênese, o neologismo omite a raiz “ética” na sua composição. Pela inexistência de um histórico de construção epistemológica própria, o “biodireito” simplesmente se apropriou da fundamentação teórico-conceitual da bioética e seguiu em frente...

No Sixth World Congress of Bioethics promovido pela International Association of Bioethics realizado em Brasília em 2002, que contou com 1400 participantes provenientes de 62 países, com a organização da Sociedade Brasileira de Bioética e a condução do então Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília - hoje Programa de Pós-Graduação/Cátedra UNESCO de Bioética da UnB - uma das mesas redondas mais concorridas tinha como título a instigante interrogação: Bioethics and Law or Bioethics and “Biolaw”? Nesse evento organizado programaticamente com participações teórico-culturais geograficamente equilibradas, perspectivas dos países do Hemisfério Sul foram confrontadas frontalmente com ideias vindas do Norte, especialmente da Europa e Estados Unidos/Canadá, ficando patente que já estava em curso na época a apropriação da fundamentação teórica arduamente construída pela bioética desde o inicio dos anos 1970, pela novidade então representada pelo “biodireito”. Na ocasião, contudo, a posição majoritária resultante dos debates recomendou que a expressão correta para o assunto deveria ser “Bioética e Direito” ao invés de “Biodireito”. É importante deixar registrado que, juntamente à Filosofia e às Ciências Humanas, o Direito é sem dúvida um dos pilares imprescindíveis à sustentação conceitual da Bioética, campo de conhecimento que optou pelo estudo da vida humana e planetária no seu amplo sentido. 

E é exatamente com esse referencial generoso e ampliado que tem como base os direitos humanos universais, que a Doutora Aline Albuquerque criou oportunamente no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Bioética da UnB o “Observatório Direitos dos Pacientes”, que agora nos proporciona essa pérola de qualidade e originalidade representada pela obra “Bioética e Justiça Restaurativa”.

Diferentemente de outros trabalhos dessa área de interface entre a Bioética e o Direito, esse livro a que me foi dado o especial prazer de prefaciar, traz na sua essência a originalidade e a independência do pensar. Ao contrário de rechaçar as imprescindíveis contribuições acadêmicas vindas do Norte hegemônico, o grupo de pesquisa liderado pela Professora Aline se alimenta dos saberes dessas paragens, mas sempre com o devido filtro crítico, com a imprescindível contextualização do conhecimento pautada em referenciais culturais e geopolíticos “do seu lugar de fala”, do lugar onde esse conhecimento está sendo gestado: o Brasil e a América Latina. Nesse sentido, não posso deixar de repetir um pensamento que não canso de reforçar: produzindo conhecimento autóctone a partir do que os próprios olhos estão vendo e construindo ideias originadas a partir da percepção e interpretação dos próprios cérebros, diferentemente de produções colonizadas que apenas reproduzem vertical e acriticamente conhecimentos forjados a partir de olhos e cérebros provenientes de outras latitudes e longitudes.

Uma argumentação que se pretenda adequada deve incluir exemplos concretos nos quais se sustentar. E é exatamente isso que procuro desenvolver a seguir com base em determinadas passagens da obra, como na Introdução do seu primeiro capítulo: (...) a Bioética latino-americana vem, ao longo do século XXI, consolidando a incorporação de temas sociopolíticos e perspectivas críticas frente ao individualismo liberal dos estudos no campo bioético... (...) A vertente relacional e comunitarista, adotada neste capítulo, endossa as pesquisas precursoras latino-americanas na direção de uma Bioética comprometida com uma visão comunitarista de mundo. Tal posição impele à crítica dos atuais enfoques de solução de conflitos morais por instâncias bioéticas fundamentados em teorias filosóficas liberais...

A Justiça Restaurativa (JR) é entendida no livro como um movimento global que já pode ser encontrado em ação nas instâncias judiciárias de diferentes países, em universidades, hospitais, etc., tendo como base certos princípios e valores e fazendo uso de antigas práticas originárias de diferentes culturas existentes no mundo. A JR busca essencialmente a restauração - seja das conexões entre as pessoas, seja de laços comunitários - por ocasião da ocorrência de conflitos ou ofensas. Um exemplo claro da postura criativa e independente trabalhada na obra se refere à sua posição crítica frente ao chamado “procedimento deliberativo” proposto por Diego Gracia para a resolução de conflitos no campo da bioética clínica. Para esse autor, a proposta consiste em um método prático e racional por meio do qual um Comitê de Bioética Hospitalar, por exemplo, delibera e toma decisões invariavelmente concretas tendo como referência a ponderação de princípios e valores, à luz das circunstâncias e consequências particulares de cada caso. Sua proposta se estrutura nos seguintes passos: deliberação sobre fatos; deliberação sobre os valores; deliberação sobre os deveres; e deliberação sobre as responsabilidades. Segundo ele, a iniciativa de levar o caso ao âmbito do Comitê é do próprio profissional que o detectou e ficou em dúvida sobre como proceder com relação ao mesmo.

O que se percebe na proposta acima é a completa ausência de menção à participação dos maiores interessados no processo de análise do conflito, o seja, os sujeitos do mesmo.

Na estrutura apresentada pelo autor espanhol, as pessoas são apenas o objeto - embora central - da referida ação deliberativa. Para as/os autores do livro, a deliberação a ser tomada com relação a um conflito concreto na ótica da abordagem restaurativa deveria partir sempre do diálogo entre as pessoas envolvidas, caso estas estejam de acordo em participar voluntariamente do mesmo.

É nesse contexto que emerge de modo cristalino e democrático a essência da proposta relacional e comunitarista da original produção acadêmica de Albuquerque e grupo, que se baseia na interpretação de que as pessoas são formadas no espaço das suas relações sociais, sendo interdependentes, estando interconectadas umas com as outras e em permanente processo de construção de relações comunitárias. Esse complexo contexto, para a JR, mostra na sua essência a existência de um senso comum de humanidade mutuamente compartilhado pelos indivíduos envolvidos em algum conflito. Neste sentido, a utilização do enfoque restaurativo para a resolução de conflitos morais na Bioética consiste em uma proposta que objetiva trabalhar a recuperação (e, se possível, a restauração...) de relações em conflito, de conexões humanas e da própria coesão intercomunitária. Vai muito além da episódica tomada de decisão de um comitê sobre um determinado conflito ou problema que envolve pessoas e suas vidas...

Como se pode perceber desse relato resumido do processo (mas que será compreendido na sua completude pela leitura atenta do livro...), no método proposto por Gracia não está previsto espaço para o diálogo e “para a escuta respeitosa entre os implicados no caso”. Ou, como registra com letras claras a coordenadora da obra no seu capítulo inicial: Na aplicação da abordagem restaurativa ao procedimento deliberativo de Gracia, constata-se que na fase da deliberação sobre o conflito não há espaço para a escuta dos sujeitos nele envolvidos. Sujeitos esses que, em tais circunstâncias, reforço com base no conhecido argumento kantiano, são transformados em mero objeto de decisões de outros.

Finalizo esse breve Prefácio deixando registrada minha admiração e reconhecimento à Professora Aline Albuquerque e seu dedicado grupo de pesquisa, cuja produção acadêmica alcança hoje justo reconhecimento não somente no âmbito da Bioética e do Direito nacional, como se estende a diferentes âmbitos de variados países da América Latina e do Caribe. O Programa de Pós-Graduação em Bioética da UnB - do qual o Observatório Direitos dos Pacientes é parte importante - vem se destacando entre os estratos superiores de avaliação da Capes/MEC exatamente por contar em seus quadros com docentes e pesquisadores de tamanha envergadura acadêmica e capacidade de resistência social, que honram o ensino e a pesquisa produzidos no país, mesmo em ásperos tempos de turbulência e negacionismo científico.

Brasília, Agosto de 2021.

Volnei Garrafa

Professor Emérito da Universidade de Brasília

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